“Baronesa”

Males de sempre

O cotidiano de três mulheres afrodescendentes com suas angústias e sonhos são temas deste documentário da cineasta mineira Juliana Antunes.

O fluir do cotidiano das amigas afrodescendentes Andreia, Leidiane e Gabriela no aglomerado das Mariquinhas, em Belo Horizonte, se dá em conversas em que repassam suas vidas. Nada que diferencie seus sobressaltos dos temores e impasses de suas vizinhas e vizinhos. A diferença é o bom-humor com que elas se entretêm, às voltas com os filhos pequenos de Andreia e a busca de soluções para superar suas dificuldades. Formam um trio a se amparar mutuamente, neste documentário de estreia da cineasta mineira Juliana Antunes, com sensível olhar sobre a realidade.

É através das conversas e as vivências dessas mulheres, ainda jovens, que ela expõe as carências do meio em que vivem. Reforçadas pelas perambulações por terreiros, becos e escadas de concreto cheios de mato e lixo. Áridos ambientes tão frágeis quanto as casas de tijolo sem reboco habitadas por elas. Desta forma, Juliana Antunes vai, aos poucos, fazendo o espectador entender a vida dos Não/Nem. Não têm acesso às melhorias urbanas ou casa própria, nem seu aglomerado é incluído na lista dos bairros dotados de infraestrutura que eleve sua qualidade de vida.

Com este lúcido encadeamento, sem avançar para além do quadrilátero em que elas vivem, Juliana Antunes registra a árdua luta pela sobrevivência desse trio de mulheres afros. Ainda assim, elas não choramingam, pelo contrário riem, trocam ideias sobre parceiros, caso de Leidiane, revelam os maus-tratos recebidos do pai, como Andreia, ou cuidam igualmente das crianças. Só quem as leva sair deste círculo é o jovem Felipe com o qual trocam variadas ideias e se divertem. Também ele enfrenta iguais barreiras e restrições, daí se sente próximo delas.

Trio de mulheres vive aos rodeios

Com esta construção, Juliana Antunes isola-os em um lado do aglomerado Baronesa, zona norte de Belo Horizonte. Eles não se relacionam com os demais moradores, embora enfrentem os mesmos problemas. Trata-se, por outro lado, de uma opção dramático-narrativa, pois a diretora-roteirista dá ao documentário uma estrutura de ficção. Os entrechos, centrados nas ações do trio de mulheres e do único homem, vão se sucedendo, dando ideia de que eles vivem aos rodeios, sem avançar para outros ambientes. Mas eles parecem querer romper com este vazio.

A forma de Juliana Antunes fugir à repetição destes círculos é centrá-los ora nas conversas de Felipe com Leidiana, ora nas de Felipe com Andreia. O que faz leva o espectador a atentar para o dilema destes últimos, sem cair no clichê do “filme-favela”, no qual a abordagem do tráfico e do crime organizado, tão presentes nos noticiários da mídia, não escapa do maniqueísmo. Ela se vale de elipse para criar suspense e configurar o pânico na terceira parte do filme. Ou seja, Andreia e Felipe devem continuar sob constante tensão ou largar tudo e, quem sabe, conseguir escapar em meio ao caos e levar uma vida sem atropelos.

Numa espécie de metáfora sobre a nova condição feminina, Juliana Antunes corta para outro cenário. O espectador então se defronta com Andreia a levantar paredes de uma casa de alvenaria. Não carece da presença masculina para construí-la ao lado de precárias edificações. É digna da composição da mulher do Terceiro Milênio que não precisa de parceiro para atender suas emergências, soterrando a imagem de sexo frágil. Velha imposição do sistema machista-conservador ocidental-cristão, e não só dele. Eis a apressada mutação que muitos ainda não veem.

Juliana sintetiza os dilemas das afros

O olhar feminino, contudo, não vem só por meio de Juliana Antunes, é reforçado pelas imagens da diretora de fotografia Fernanda de Sena, em planos abertos e fixos. Ela capta com eficiência os ambientes a um só tempo exíguos e vazios, em meio ao companheirismo, a solidariedade e a urgência de viver e cuidar de três crianças. No entanto não escapam à intromissão da dupla tráfico/crime organizado que se estabeleceu nos aglomerados por falência das estruturas de poder burguês brasileiro em decadência. E devido a isto ameaça não só os moradores dos aglomerados como dos que moram nos bairros classe média ou alta à sua volta.

Em 71 minutos, Juliana Antunes sintetiza de forma exemplar neste seu “Baronesa” os dilemas das mulheres-afros, e não só delas, que procuram viver ao seu modo. Livres e dispostas a sobreviver sem traumas, às vezes hesitantes quanto ao parceiro, a exemplo de Leidiane, porquanto o sistema lhes impôs tantos danos e frustrações que lhes falta confiança para superá-los. Assim a jovem cineasta capta com sua câmera a vida dos Não/Nem num instante histórico de afirmação feminina. É o bastante!

“Baronesa” Documentário. Brasil. 2018. 71 minutos. Montagem: Affonso Uchôa/Rita M. Pestana. Fotografia: Fernanda de Sena. Roteiro/direção: Juliana Antunes. Elenco/depoentes: Andreia Pereira de Souza/ Leidiane Ferreira/ Felipe Rangel, Gabriela de Souza.

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