“Sonhos com Xangai”: Vidas em conflito

Diretor chinês Won Xiaoshuai traça um perfil da China atual e mostra como a modernização influi na visão que as novas gerações têm do processo de mudança       

Há no cinema chinês atual a urgência de mergulhar nas contradições surgidas na era pós-Mao, dando ênfase aos conflitos familiares. São eles que elucidam os choques e visões de gerações que não conheceram os períodos de construção de um país em franca ascensão. Em “Sonhos com Xangai”, o jovem diretor Won Xiaoshuai leva o espectador ao interior da China, para onde operários foram levados para construir as fábricas que impulsionariam o desenvolvimento econômico atual. Esta era a política dos anos 60, quando milhares deles, escolhidos a dedo, migraram para cidades estratégicas incluídas no plano qüinqüenal da época.Com o tempo, as metas alcançadas, muitos deles quiseram voltar para suas regiões de origem, mas as autoridades, temendo a multiplicação dos problemas urbanos, não os autorizavam. A saída para eles foi burlar a vigilância e enfrentar os problemas que surgiriam a partir daí.



               



Em “Sonhos com Xangai” a história é centrada na família de Wu Zemin (Yan Anlian), operário de Xangai, para a pequena Guiyand. Ali, como se aguardasse a autorização da cúpula do partido e do diretor da fábrica onde trabalha, ele espera o momento em que embarcará com a família de volta à sua cidade natal. Não está, porém, só nesta sua empreitada. Outros operários, como ele, também anseiam regressar em melhores condições do que foram obrigados a enfrentar em Guiyand. Em suas reuniões, eles discutem o momento em que isto poderá se dar, mas este momento nunca chega, como na peça de Samuel Becket “Esperando Godot”. O que os tornam ansiosos, receosos de que terão de continuar sonhando com uma vida melhor na florescente Xangai. Até que um turbilhão de acontecimentos precipita decisões que não imaginavam serem possíveis. E Xiaoshuai mostra o quanto situações individuais podem influir nas questões coletivas.


                


 


Choque entre gerações desencadeia conflitos


               


 


Durante seu período em Guiyand, esses operários, em particular Wu Zemin, criaram a mentalidade de que se diferenciavam dos moradores locais. Eles passam a idéia de que pertencem à outra camada operária, espécie de elite, que, devido a seu possível retorno a Xangai, não pode se misturar com seus camaradas locais. Este comportamento é repassado a seus filhos insistentemente. De modo que os jovens se dividem, passando uns a repeti-lo, enquanto outros, como a adolescente Qing Hong (Gao Yuanyuan), filha de Wu Zemin, o rejeita; não vendo como se distanciar da cidade onde cresceu. O choque entre as duas gerações irá desencadear uma série de conflitos, que refletem as contradições de um país em acelerada mutação. E, dialeticamente, atesta a construção de outra cultura, outra maneira de estruturar a vida, uma vez que os jovens, criados em Guiyand, não vêm Xangai, como a “terra da promissão”, que seus pais.



             



É com este enredo que Xiaoshuai traça um perfil da China atual e mostra como a nova estrutura econômica cria a mentalidade dos jovens, cujo compromisso com planos qüinqüenais e construção de um novo país se diferencia, e muito, do de seus pais. Logo na abertura do filme, num travelling que avança para uma janela, ouve-se o canto que embala a ginástica matinal de uma escola secundária. O espaço por onde a câmera avança é sombrio, azulado, quase claustrofobico. E se abre para o pátio onde Qing Hong e suas colegas fazem os exercícios. É como se ele, o diretor, nos dissesse que o espaço de manobra que eles se movem é por demais estreito. Nas seqüências seguintes, irá ilustrar  esta idéia, cortando para o jovem Fan Honggen (Li Bin), numa loja, onde compra um par de sapatos vermelho. Esta cor, ao contrário do que se poderia antever, enfeixa significado adverso. Mostra-se reluzente; destaca-se demais. E desencadeia, a partir daí, múltiplas revoltas.


             



Sapato vermelho é motivo de proibição
 
             


É pela forma como o par de sapatos vermelho é presenteado, a maneira como é aceito e, depois, descoberto, que Xiaoshuai questiona o modo como Wu Zemin trata a filha Qing Hong. Em seus sonhos com Xangai, não há espaço para as descobertas da filha. Ele quer mantê-la sobre controle total. Mas, contraditoriamente, tenta, a todo custo, escapar aos ditames do diretor da fábrica e do Partido, retornando a Xangai. Percebe-se que qualquer lance, fora deste esquema, o impedirá de alcançar seus objetivos. Entende-se que há em “Sonhos com Xangai” mais que conflitos de gerações. Às vezes lembram as narrativas de Ozu, o diretor japonês cujas obras abordaram as relações entre pais e filhos. Cheias de incompreensões, terminavam por mostrar o quanto eles se distanciavam, por mais que tentassem ir no mesmo sentido. Xiaoshuai acrescenta a estes choques a visão de que o sistema constrói outro tipo de cidadão, menos apegado a ele, por mais que o eduque civicamente.



           



Na primeira parte, Xiaoshuai faz o espectador ter a idéia de que a paixão entre Qing Hong e Honggen tem como único obstáculo a oposição de Wu Zemin, depois lança sobre ele um turbilhão de fatos, gerados pelo comportamento dos operários vindos de Xangai. Honggen então compreende que a oposição de  Wu Zemin a seu amor por Qing Hong tem motivos mais profundos e injustificados. Também o público se vê diante de uma situação inusitada, de difícil aceitação. Fica com a sensação de algo compreensível, mas inaceitável, pois está assentado sobre alicerces frágeis e falsos. Diferente da relação entre Xiao Zhen (Wang Xueynag), amiga de Qing Hong, e Lu Jun (Qin Hao), o conquistador do vilarejo, dispostos a viver segundo suas visões, longe dos olhares incisivos de seus pais. Xiaoshuai lança um olhar inclemente sobre as relações entre os jovens da província, distantes das metrópoles, porém igualmente influenciados pela cultura de massa. Numa bela seqüência, eles, carentes de espaço para encontros e diversão, se reúnem num galpão distante para dançar e se conhecer.


            



Juventude sofre influência da cultura de massa


            


É hilariante a cena em que Lu Jun imita o John Travolta de “Os Embalos de Sábado à Noite”. A mesma roupa, o mesmo penteado e os mesmos trejeitos. Nem nos longínquos rincões chineses, os jovens escapam à cultura de massa. É mais que imitação; trata-se de uma descoberta, da afirmação de uma geração em busca de seu espaço. Opõe-se ao tradicional, ao estabelecido, numa cidade onde os encontros entre rapazes e moças são ditados por idéias ortodoxas. Eles fazem tudo à sua maneira, pouco se importando com as conseqüências de seus atos, que muitas vezes levam a mulher a arcar com o peso de uma relação sem compromisso. Não é diferente no Ocidente, onde a juventude envereda por caminhos ainda mais temerários. Xiaoshuai lança sobre ela vários olhares, num deles avança para o choque com os pais, levando-os a puni-la, noutro reforça sua rebeldia, dizendo que tudo pode ser um rito de passagem. Quando Zhen volta Guiyand, depois de um período em Xangai, para visitar a amiga Qing Hong, seu comportamento fica hesitante e ambíguo, e tem um quê de fracasso.



             


A maneira como as famílias de Xangai encaram o relacionamento amoroso de seus filhos demarca as visões que têm das famílias de Guiyand. Os pais de Zhen aceitam a realidade local, embora também sonhem em retornar a Xangai, em busca de uma vida melhor para si e sua filha. No entanto, a de Qing Hong está dividida. Wu Zemin impõe seu objetivo, inclusive à mulher Mei Fen. No centro de tudo está a forma como o sistema chinês molda as relações sócio-econômicas em todo o país. Ao interiorizar o desenvolvimento, evitando a migração, cria a perspectiva de retorno à sua cidade ou região de origem. E os trabalhadores passam a viver em função dessa volta, como forma de participar da riqueza nascente. Isto tem conseqüência direta na maneira como eles, os trabalhadores, constroem seu futuro. Xiaoshuai deixa claro que na raiz dos problemas tratados em seu filme está a política, a decisão que dita o jeito como os trabalhadores irão edificar sua consciência.



              
             


Coletivo e individual têm igual tratamento


             


 


Não é pouco para uma obra cinematográfica. Normalmente não se vê um filme tratando do individual e do coletivo ao mesmo tempo. O individual é a paixão de Qing Hong por Honggen, o coletivo é o debate do grupo de operários de Xangai sobre a decisão do diretor da fábrica, a quem cabe dizer se retornarão ou não à metrópole. No alto está o poder supremo a planejar, decidir, onde e quando os operários irão se deslocar para atender às necessidades de desenvolvimento do país. Estas decisões irão influir, sem dúvida, na vida dos que moram nas metrópoles e nas cidadezinhas do interior. E os jovens ficarão no meio, entre as idéias de seus pais, e sua própria visão de futuro, sem os preconceitos da geração anterior e criando seu próprio caminho, ainda que sob escombros, às vezes, sangrentos.



              



O conflito de gerações, ao estilo do realismo italiano, faz refletir sobre o direito de os jovens construírem seu futuro. No entanto, se isto pode ser feito, ao custo de sacrifício, caso de Zhen e Lu Jun, a maneira como Wu Zemin criou a visão de retorno a Xangai pode trair seu intento; o de ter absoluto controle sobre a filha Qing Hong. E terminar de forma trágica, levando o espectador a pensar se o comportamento de Honggen não foi ditado pelo preconceito e se transformou numa forma de vingança. As cenas finais, das mais impressionantes vistas no cinema atual, com a câmera centrada em Qing Hong, valem mais que mil análises, por mais completas que sejam. Os olhos dela indicam onde estão seus pensamentos: fica um espaço, um vazio que aponta o quanto de violência existe no preconceito, com conseqüências que marcarão uma vida para sempre.


            


Um filme para se ver e rever


          


“Sonhos com Xangai” é, assim, um filme para se ver e rever, dadas às várias camadas que encerra. Confirma a mudança sofrida pelo cinema chinês na geração pós-Chan Kaige (Adeus a Minha Concubina) e Yang Zimou (“Nenhum a menos”, “Clã das Adagas Voadoras”).A nova geração está mais interessada em refletir sobre a China atual, cheia de contradições, de possibilidades, de rumos acelerados de superação da etapa de construção do “Socialismo de Face Chinesa”. Em “Sonhos com Xangai”, os filhos, ao contrário dos pais, querem permanecer no interior, em busca de uma vida menos atribulada, enquanto seus pais continuam a sonhar com um estilo de vida mais elevado. Contraditório, como tudo na vida, mas não menos verdadeiro. São duas gerações com visões diferentes do mesmo processo. Talvez seja este o processo natural, que divide as gerações, entre elas há sempre o caminho das transformações que a todos levam e todos, no final, mudam, mesmo que não queiram avançar.


 


 


“Sonhos com Xangai” (Quing Hong). China. 2005. 126 minutos. Direção/roteiro: Wang Xiaoshuai. Elenco: Gao Yuanyuan, Bin Li, Yan Anlian, Tang Yang, Wang Xueynag E Qin Hao


 


(*) Prêmio do Juri do Festival de Cannes 2005.

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