Pablo Neruda para os jovens na ditadura

No mais recente 12 de julho, o mundo inteiro comemorou o dia do nascimento de Pablo Neruda. No Brasil, passamos ao largo e fundo em nossa ignorância. O que é mais um sintoma dos tempos bárbaros que atravessamos. Para que poesia? Para que lembrar um poeta comunista, ainda que dos maiores da civilização? Então recuperemos o que sempre nos falou a poesia de Pablo Neruda a seguir.

A primeira vez em que lemos o poeta, ele nos chegou no livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Destaco o que mais sentíamos:

“Poema 20

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros, ao longe”.

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis, e às vezes ela também me quis…

Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.
A beijei tantas vezes debaixo o céu infinito.

Ela me quis, às vezes eu também a queria.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Como para aproximá-la meu olhar a procura.
Meu coração a procura, e ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquear as mesmas árvores.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a quero, é verdade, mas quanto a quis.
Minha voz procurava o vento para tocar o seu ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a quero, é verdade, mas talvez a quero.
É tão curto o amor, e é tão longe o esquecimento.

Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços,
minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo”.

Mais adiante, iríamos conhecer o Canto Geral, o Confesso que Vivi, o Cem Sonetos de Amor, do qual é impossível não citar este magnífico:

“Poema XLIV

Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo”.

Mas não conhecíamos tal beleza de Neruda sob o ditador Médici, quando a poesia era ao mesmo tempo resistência e luxo. Que luta íntima atravessávamos, meu Deus. No romance “A mais longa duração da juventude”, me refiro ao pensamento do narrador, num aceso de discussão no Pátio de São Pedro, no Recife:

“Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973. Mas ainda ali, percebo agora, eu seria injusto até a estreiteza e maledicência. Então os artistas não podem expressar o sentimento que corre na gente? Então é justo acusar de leviano, de traidor da revolução, quem escrever como homem poético o homem prático? Só a raiva, no que tem de embrutecedora, verá a canção da luta armada no Brasil dessa maneira. Se assim fosse justo e real, o que dizer de Lorca, de Víctor Jara, até mesmo de Neruda?”

Páginas depois, na praia de Porto de Galinhas, o romance narra um diálogo impossível de sensibilidades, quando o personagem Zacarelli faz a corte à musa do coração, que não o deseja:

“- Posso escrever os versos mais tristes esta noite – cito o verso.

– Mas é dia de sol, rapaz. – Alberto fala. – Pra que tristeza?

– Eu sei – respondo. – Eu me lembrei do poeta Neruda.

– Neruda é alegre mesmo quando fala de tristeza – Zacarelli fala. E olha para Iza: – Ninguém fala melhor sobre o amor que Neruda.

– Eu gosto mais de Vinícius de Moraes – Iza responde.

– Sim, ele também – Zacarelli se corrige rápido. – Aliás, em muitos poemas Vinícius é melhor que Neruda.

Iza sorri para a corte. O arqueiro incansável parece ter acertado uma flecha entre a defesa do castelo. No centro da ameia, o sorriso indica que foi alcançada, parece. Mas aparência, ar de bem-aventurança não significa aceitação do amor, como o julga a carência masculina. Quem está defendido para o engano? Zacarelli bem menos, pelo que começa, sentado na areia da praia. Cruza os braços, descruza-os, quer se sentir em uma cadeira imaginária, e só lhe resta apoiar os dois braços atrás de si. Mas assim posto ele perde eloquência, insubstituível para assaltar a pretendida, a que foi atingida no coração, na ameia do castelo. Então ele se curva para a frente e cruza as pernas como um iogue, numa acrobacia. E com as mãos de auxílio, fala:

– Vinícius tem uma qualidade a mais que Neruda: compõe música. Neruda não é compositor, é só poeta.

– Só? – pergunto.

– Entenda. Eu não estou dizendo que ser poeta é uma coisa menor. Mas o fato é que Vinícius joga bem em duas posições.

– Mas na poesia esquerda não joga como Neruda – volto.

– Você está certo – Alberto me apoia, embora não tenha lido uma só linha de Neruda. Mas conhece a fama do poeta comunista. Zacarelli sente a cisão. Ainda assim, não vai perder o coração de Iza. E rápido, avança:

– Eu acho que os poemas de ambos são em essência revolucionários.

Terrível, a reação feminina. Iza, Anita, Luísa, até mesmo Nelinha, adiantam os rostos como felinas a se dizerem “não me diz respeito”. E o nosso amigo perde o cerco à fêmea. Então vai mais certeiro, o combatente cortejador:

– Quem fala bem sobre o amor, fala bem da revolução. É claro, mesmo que não queira, todo poeta é comunista. Mas quando expressa bem o amor, ele é um revolucionário em essência. Vinícius de Moraes tem uma composição que é sublime. Aquela que fala “ó minha amada de olhos ateus, teus olhos são cais noturnos cheios de adeus”. Todo grande poeta socialista assinaria. Você não acha?

As estudantes de medicina assentem, mudas aprovativas. Ah, para quê? Não vá o artista acreditar no sucesso, nem vá o toureiro acreditar no olé do público da arena. Volta Zacarelli:

– Todos nós somos poetas. Quando estamos sob o fogo da paixão… – e ousado olha intenso para Iza – Todos nós no amor somos poetas. Por exemplo, – o louco avança mais – eu próprio seria capaz de escrever poesia agora. – E olha de novo somente para Iza, à beira do suicídio completo: – Você não acha?

– Eu não entendo de poesia – Iza responde. – Os meus poetas podem cantar em vão.

E sorri, desta vez em outro tom, num prenúncio de gargalhada. Zacarelli me falou, muitos anos depois, que ela sorriu como as vilãs de telenovelas gargalham. Que sorriso estúpido para uma imersão poética.

– Ali, ela mostrou o próprio nível – ele me falou, 30 anos depois. Mas não agora, enquanto ela sorri, no que é acompanhada por Luísa e Anita. Em mim se levanta uma nuvem de solidariedade ao amigo, de empatia, por ver nele uma condição que também podia ser minha. E falo, nada diplomático, agredido também pela quase zombaria:

– É uma falta grave não gostar de poesia.

– Eu não disse que não gosto – Iza responde. – Eu disse que não entendo.

– Mas a gente entende a poesia com o coração – respondo. – Não é preciso fazer uma análise científica.

Luísa levanta as suas coxas morenas, impudica, adepta do claro futuro dos medíocres:

– Iza está certa. Ela não tem obrigação de entender poesia. Ela tem outras preocupações.

– Mais poéticas? – pergunto.

– Sim, Ela deseja ser uma boa médica. Essa é a sua poesia.

– Entendo – Zacarelli murmura. Ele pode atacar, mas não sabe a medida. Pressente que a sua resposta seria a confissão de um talvez amante derrotado. – Entendo –e olha para nós. O olhar é um pedido de socorro, deseja ‘uma pequena ajuda dos meus amigos’, e nos diz sem fala: elas não fazem parte do nosso clube.

– Ela é uma médica consciente da sua poesia – eu digo.

– Isso mesmo – Iza responde, sem entender a ironia. – As pessoas são diferentes. Umas gostam mais de poesia, outras menos, outras nem gostam. Nós vamos mudar o mundo?

– Pretendemos – Zacarelli fala.

– É tudo que a gente quer. Vocês não? – Alberto pergunta.

– Sim Mas à nossa maneira – Iza fala.

– Gente, vamos beber – Tonhão fala em nome da boa vizinhança.

– À revolução – Zacarelli ergue o copo, com raiva.

– A todos nós – Narinha fala.

Naquela manhã, nos chegou o conhecimento de que não ficaríamos bêbados por mais que bebêssemos. Levantamos os braços, fizemos pose em uma jangada na praia com os punhos fechados. Quisemos até subir no coqueiro, o que não conseguimos por absoluta inabilidade. Mas lá no alto, se um de nós pudesse ver adiante, falaria: senhores, seremos postos à prova de toda nossa convicção poética. Barbárie à vista”.

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