Obrador terá desafios, mas México já se reencontrou com sua história

Em um célebre poema, Octavio Paz fala do cheiro de pólvora que inebria o México quando lembra seu passado. As lutas antigas, da independência à Revolução iniciada em 1910, passando pelas guerras em torno do processo de construção do Estado no século XIX, surgem ali com uma dubiedade inquietadora: são as raízes ancestrais e são também o passado heroico que pesa sobre a inação contemporânea.

Ilustração: Tainan Rocha

Se os “avós” podiam contar as histórias de Benito Juárez e Porfírio Díaz e se os “pais” falavam Pancho Villa e Emiliano Zapata, o mexicano da contemporaneidade ouvia, mas permanecia calado. “De quem poderia falar?”, indaga o verso final. Hoje, desde 1º de julho, ele pode falar da histórica vitória de Andrés Manuel López Obrador.

As urnas deram a presidência do país ao candidato da esquerda, um dirigente histórico da oposição às oligarquias que dirigem o México há décadas e impuseram o receituário neoliberal cujas consequências foram a pobreza, os subempregos e a violência. Nos vácuos deixados por um estado devastado, cresceu o crime organizado e a corrupção endêmica na associação entre cartéis, juízes, delegados, promotores e políticos.

O México, a quem os neoliberais prometeram a prosperidade (como fazem agora aqui no Brasil) deu, no dia 1º, sua resposta e seu exemplo. Obrador recebeu mais da metade dos votos, uma vitória inquestionável. A coligação que o apoiou fez maioria na Câmara e no Senado nacionais, além de obter vitórias significativas nos estados e nas principais cidades. O PRI (Partido Revolucionário Institucional), do atual presidente, Enrique Peña Nieto, foi praticamente varrido do mapa. A voz do povo, contrária à retirada de direitos e entrega da soberania, não poderia ter sido mais clara.

Peña Nieto foi um candidato midiático e um presidente omisso. É um desses líderes fabricados com gel no cabelo, óculos escuros e diplomas de escolas de negócios inspiradas em Chicago. No poder, vinha encampando um programa de reformas semelhante ao que Temer e seus candidatos fazem e defendem para o Brasil. A mais chocante delas foi a mudança constitucional que permitiu a venda do petróleo mexicano, até então uma riqueza estritamente nacional e só explorada pela PEMEX, estatal do setor. A mesma alteração também abriu as portas para a privatização da energia elétrica do país.

Como se não bastasse, o programa de Peña Nieto ainda trouxe uma reforma trabalhista, outra fiscal e ainda uma no sistema de ensino. As semelhanças com o Brasil e demais países da América Latina não são ocasionais. Trata-se do mesmo projeto de desmonte que age em todo o continente, com a mesma finalidade e as mesmas consequências.

Em um gesto de ousado servilismo que escandalizou até os mais fanáticos seguidores fiéis de tudo o que é determinado por Washington, Peña Nieto convidou o ainda candidato Donald Trump para um visita à Cidade do México. Trump, autor de notórias declarações racistas e responsável por mais de um ofensa contra os mexicanos, havia acabado de defender a construção de um muro separando os dois países. No lugar de um protesto, o presidente do México realizou uma recepção elegante e recebeu de Trump as mesmas ofensas, agora ditas face a face. Reação? Nenhuma. Nem mesmo uma nota opaca e medrosa, como é do gosto também dos atuais ocupantes do nosso Itamaraty. Foi esse governo que o povo mexicano derrotou no dia 1º, um dos melhores exemplos do que há de mais servil e asqueroso na plutocracia latino-americana.

É outra a escola de Lopez Obrador. Ele já foi comparado a Lázaro Cárdenas, que presidiu o México nos anos 30 e levou à frente o programa da Revolução que mudou o país no início do século. A comparação entre os dois momentos históricos cai bem: Cárdenas construiu uma política que visava alcançar a independência econômica do México – cujo marco foi a nacionalização do petróleo – e a ascensão social dos trabalhadores. Realizou a reforma agrária prevista na revolucionária Constituição de 1917, implementou direitos sociais e reconheceu os direitos dos indígenas às suas terras.

Não à toa, o mesmo ódio dispensado pelas elites a Cárdenas foi também vertido contra Obrador em toda sua carreira política. Antes de vencer, Andrés Manuel foi roubado em 2006, quando uma fraude deu a vitória ao candidato do mercado. Perdeu em 2012, perdeu com uma margem um pouco maior, mas baixo uma campanha quase majoritária dos grandes meios a favor de Peña Nieto.

Depois de duas derrotas, os dirigentes de seu partido, o PRD (Partido da Revolução Democrática), que Obrador ajudou a fundar para se opor à máquina do PRI e ao neoliberalismo, decidiram que havia passado o tempo de seu líder. Obrador saiu, fundou o Morena (Movimento de Regeneração Nacional), congregou os movimentos populares e o anseio por mudanças em torno dessa nova e venceu as eleições!

O Coronel Zagal, personagem de Carlos Fuentes em “A Morte de Artemio Cruz”, dizia após a derrota da Divisão do Norte, exército com o qual Pancho Villa difundia a reforma agrária e a expropriação dos ricos pelo país: “Nossa gente é como as lagartixas, vai tomando a cor da terra, se enfia nas cabanas de onde saiu, volta a vestir-se de peão e volta a esperar a hora de seguir lutando, mesmo que seja daqui a cem anos”. Cem anos depois da Revolução e de sua Constituição, suas bandeiras voltaram a tremular.

Mas a referência reivindicada por Obrador, um exímio conhecedor da história de seu país, é ainda mais antiga. Quando foi prefeito da Cidade do México, posto que o elevou à liderança da oposição, falava sempre tendo atrás de si uma imagem de Benito Juárez, o primeiro indígena a ocupar a presidência, em 1861. A referência não é casual. Juárez foi o presidente da Reforma liberal, que laicizou o estado retirando da Igreja a propriedade sobre enormes latifúndios. Mas, mais do que isso, é ele o presidente da recuperação da independência do país.

Sem conseguir derrotar Juárez com suas próprias forças, os conservadores mexicanos abriram o país para uma invasão do exército francês. Naquele caso, Paris achou que a “latinidade” unia os dois lados do Atlântico e enviou uma expedição armada que ocupou a capital mexicana. A República foi derrubada, com as palmas entusiasmadas da elite conservadora local, precursora dos atuais Peña Nieto, Temer e Macri. Em seu lugar, foi inaugurado um Império e, para emoldurar o sonho conservador, um nobre Habsburgo foi coroado imperador: Maximiliano I. Após três anos de guerra, a resistência armada liderada por Juárez derrotou a invasão e restabeleceu a República. Maximiliano foi fuzilado e o índio zapoteca foi novamente eleito presidente do México liberto.

Reformas estruturais e defesa da soberania é o que o retrato de Juárez simboliza logo atrás de López Obrador. É grande o desafio que terá pela frente.

Por um lado, precisará conversar sobre imigração com um governo norte-americano apinhado de ultradireitistas e xenófobos. Por outro, terá que ser necessariamente cauteloso para reverter uma política externa que se tornou mera correia de transmissão do gabinete do Secretário de Estado, em Washington. Tanto Marcelo Ebrard, que será o ministro de relações exteriores de Obrador, como Héctor Vasconcelos, o outro dos dois conselheiros do presidente em relações internacionais, sabem que uma política soberana para seu país demanda um olhar mais direcionado para o sul que para o norte. A integração latino-americana deve voltar à pauta na Cidade do México, mas não é razoável esperar gestos bruscos de um governo que começará sua caminhada amarrado à Aliança do Pacífico e ao NAFTA.

O âmbito interno é igualmente desafiador. Não se consegue combater a desigualdade e a associação entre violência e corrupção sem afetar interesses poderosos e atualmente encastelados nos palácios de governo dos dois lados do Rio Bravo. Muito embora disponha de uma margem de manobra que seus antecessores não tiveram no Congresso, a coligação que sustenta Obrador é heterogênea. Certamente haverá conflitos em temas sensíveis. Conseguirá reverter as reformas liberais aprofundadas por seu antecessor (trabalhista, educacional, fiscal e energética)?

Por outro lado, as declarações de amor que, hoje, após a vitória, o mercado dirige a Obrador soam mais como convites à cooptação que como adesão ao seu programa. Dois discursos ilustram a fio sobre o qual caminhará o novo governo: um deles, no hotel Hilton, para a imprensa, e outro, no Zócalo, para a multidão. No hotel, Obrador fez o que um candidato vitorioso deve fazer. Chamou a conciliação, garantiu que não tocará na Constituição (o que, na verdade, significa dizer que o Banco Central do México seguirá autônomo) e que os contratos firmados pelo Estado serão respeitados. Acalmou os mercados…

Não foi diferente o tom do discurso que fez, minutos depois, na grande praça do centro histórico da capital do país. Mas ali ele achou necessário enfatizar que tem consciência da sua responsabilidade diante da História. Não prometeu apenas um bom governo, mas a “Quarta Transformação”, que se seguiria à Independência, à Reforma e à Revolução. “Não falharei com vocês”, garantiu à multidão que lhe respondeu cantando, com os punhos para o alto: “você não está sozinho”.

O México e a América Latina tiveram uma vitória histórica em 1º de julho. Mas, além da legitimidade inquestionável de sua votação inédita, o novo presidente precisará da companhia e vigilância constante das ruas para enfrentar os interesses já armados contra o programa de mudanças que venceu as eleições.

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