Uma dor sem nome 

É possível nomear a dor? É possível dar nome a ela? Já tive dores, muitas. Algumas de doer de forma inimaginável, de não conseguir descrever. Mas nunca tive, e espero nunca, nunca ter, a dor de Bruna Silva e José Gerson, a mãe e o pai de Marcos Vinícius da Silva, o menino de 14 anos assassinado durante uma operação policial na Maré, no Rio de Janeiro.

Assassinado. Esse é o nome. O nome real. Vítima de bala perdida é eufemismo, é ficcional. Marcos Vinícius foi assassinado. Foi assassinado por quem deveria protegê-lo, foi assassinado por um agente do Estado. Vestia farda, farda da escola, e ainda assim foi morto. Tinha 14 anos e muita alegria, contam os amigos, dizem os professores. Nada disso conta mais. O que resta agora é uma dor, indizível, impronunciável, imensurável. Uma dor maior do que o mundo.

Dói até para escrever sobre isso, sabe? Fico imaginando, se dói tanto em mim, que nem o conhecia; se dói tanto em mim, que nunca o vi; como doerá nos amigos, nos professores, no pai, na mãe?

Marcos Vinícius da Silva não foi o primeiro. Tampouco será o último. Mas é preciso que falemos, que pronunciemos o seu nome, que gritemos bem alto, que deixemos gritar alto a nossa indignação. Se não denunciarmos, se não nos indignarmos, se não chorarmos, a barbárie avançará e tomará conta de tudo.

Quando não formos mais capazes de nos comover com um crime assim, é porque estará morta a humanidade dentro de nós, é porque já não mais seremos humanos, teremos nos transformado em outra coisa, em outra espécie de seres. Quando não doer mais em nós, é porque já não haverá mais esperança alguma para a humanidade.

Mal consigo ler o depoimento da mãe, o seu espanto perante a estupidez do ato que tirou a vida do seu filho.

“Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?”

Ah! O que a gente responde a isso? Como dizer que a gente sabe que ele viu sim a roupa de escola? Como dizer que a gente sabe que ele viu sim um menino de 14 anos, com a farda da escola, com a mochila, com os livros? Como explicar isso?

"A ambulância demorou uma hora para chegar porque os policiais mandaram ela voltar da avenida Brasil. Aí veio uma ordem superior mandando ela entrar. Nesse momento, meu filho já estava roxo, pálido, gelado. O beicinho dele já estava inchado. Ele estava falecendo ali na minha frente", conta a mãe, Bruna da Silva. É possível imaginar a dor dessa mulher? Eu não consigo, simplesmente não consigo.

Escrevo sobre essa mulher, escrevo sobre esse menino, como uma obrigação. Uma obrigação que vem da minha condição humana. Escrevo porque ainda sou humano, ainda habita em mim a humanidade. Escrevo porque acredito, com todas as forças, que é possível barrar a barbárie, que é possível impedir a desumanização do homem.

Mesmo que doa tanto em mim, que nunca vi aquele menino, mesmo que doa tanto em mim, escrevo. Aquela mãe provavelmente não saberá que escrevo, mas isso não importa. Importa a mim que o meu ato signifique um fiapo que seja de humanidade, uma nesga de solidariedade àquela dor que renego, que não quero nunca que chegue sequer perto de mim.

Como não chorar ao ver a imagem daquele menino, ao ver o pedreiro Gerson e a diarista Bruna inconsoláveis. Como não chorar ao ouvir o depoimento da mãe?

"Ele falou 'ô, mãe, eu nunca mais quero sentir essa dor na minha vida'. Eu falei 'meu filho, fica quietinho e não fala, pra não entrar ar'. Ele disse 'mãe, eu tô com sede'. Meu filho morreu com sede".

Dói, dói muito escrever hoje. Sonho, feito o Riobaldo de Guimarães Rosa, que ainda “vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente…”.

Ilustração: Pevê Azevedo

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