Crianças entre a intolerância e a violência

Se é verdade que podemos medir a grandeza e a humanidade de uma civilização pelo modo como são tratadas as crianças, o símbolo do colapso do mundo ocidental globalizado foi exibido na foto do corpo de uma criança, um menino sírio de três anos, encontrado em uma praia da Turquia em setembro de 2015.

Passada a comoção provocada em todo o mundo pela tragédia do menininho sírio, o drama de milhares de crianças e suas famílias continua no centro da crise migratória . Fugindo da guerra e da pobreza, enfrentando os riscos de viagens, na maioria das vezes intermediadas por exploradores e a hostilidade dos países onde buscam refúgio, milhões de crianças se deslocam, acompanhadas ou sozinhas. O UNICEF divulgou no último dia 20 de junho – dia que a ONU estabeleceu como dia mundial dos refugiados, um número assustador de 30 milhões de crianças. Esta divulgação aconteceu justamente no calor da indignação causada pela política de “tolerância zero” do presidente Donald Trump em relação aos migrantes que tentam entrar nos Estados Unidos sem documentação, política esta que vem utilizando de forma ostensiva a estratégia de separar pais e filhos. Os pais, levados a centros de detenção ou sumariamente expatriados são obrigados a deixar para trás suas crianças que permanecem indefinidamente sob custódia do governo e literalmente enjauladas sem saber se ou quando verão seus pais novamente.

O governo dos Estados Unidos, ao que parece, permanece indiferente às manifestações de diversas organizações de direitos humanos e a própria ONU. Fato paradigmático foi a saída dos Estados Unidos do Conselho dos Direitos Humanos daquela Organização.

Apoiado por boa parte de seu eleitorado republicano, o presidente Trump faz hoje com os “latinos”, a quem considera uma escória, o que seu país sempre fez e faz com famílias negras e índias: separar pais e filhos sob alegações, muitas vezes moralistas, onde agentes do Estado definem unilateralmente se uma família tem ou não o direito de ficar com seus filhos.

Em um outro artigo abordamos a desqualificação dos pobres e a criminalização da pobreza como estratégia de dominação. A desqualificação de povos inteiros continua, em pleno século XX , sendo uma estratégia para justificar e legitimar encarceramentos, massacres e extermínios . Não importa que as vítimas sejam crianças. Para a prepotência dos dominantes elas já cometeram o crime maior; imprescritível e inafiançável que é a sua própria condição e a sua origem.

É nesse processo de desqualificação daquele que é considerado fraco e insignificante e de banalização de sua dor que absurdos como as cenas de crianças enjauladas não provocam a menor comoção daqueles que consideram aceitável o tratamento dado a imigrantes nos Estados Unidos, a refugiados na Europa e aos habitantes das periferias nas grandes cidades. 

Crianças mortas na fuga dos horrores das guerras provocadas com a conivência e, muitas vezes, com a intervenção direta dos governos de países que lhes fecham as portas e crianças separadas de seus pais e enjauladas em centros de triagem e custódia na chamada “maior democracia do mundo” padecem da mesma indiferença com que, no Brasil, a parte economicamente privilegiada da sociedade encara o fato de crianças de comunidades populares serem exterminadas a caminho da escola como aconteceu com Marcos Vinicius da Silva de 14 anos em meio a uma ação da polícia realizada no Morro Pavão- Pavãozinho e no complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro. Uma tragédia que está longe de ser um fato raro não só no Rio mas também em muitas outras cidades brasileiras onde crianças convivem cotidianamente com a violência e o medo. Um cenário desolador que não apresenta perspectivas de alteração se considerarmos a proliferação da cultura de violência que transforma em heróis aqueles que protagonizam brutalidades que vitimizam crianças em todo o mundo. É assim que Trump, em seu delírio no controle de fronteiras é tido como nacionalista, enquanto no Brasil, a intervenção federal com o uso da força militar nas comunidades populares do Rio de Janeiro conta, senão com o apoio, pelo menos com o silêncio dos que sequer imaginam o que é estar cotidianamente sob fogo cruzado.

É assim que, em um mundo caótico, dominado pelo medo e pela violência, enjaular e matar crianças adquirem conotação de política de Estado, sem que isso cause qualquer consternação entre os que se arvoram em “defensores da vida”.

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