“Gauguin – Viagem ao Taiti”

Espírito livre

A obsessiva relação do pintor pós-impressionista Paul Gauguin com a natureza e os taitianos é o centro deste filme do francês Edouard Deluc.

Cineastas e roteiristas normalmente cortam, sintetizam, fundem sequências, episódios, personagens e momentos históricos em seus filmes, para melhor expor seu tema ao espectador. E, por que não, encaixá-lo na grade dos exibidores. Neste “Gauguin – Viagem ao Taiti”, exibido no Festival Varilux de Cinema Francês 2018, o cineasta Edouard Deluc e seu terceto de roteiristas, Etiene Comar, Thomas Lilti e Sarah Kaminsky se utilizam desta técnica de estruturação de roteiro. O Gauguin (Vincent Cassel) a surgir na tela é um ser depauperado, vítima de ataque cardíaco, que obsessivamente continua a pintar e esculpir sem trégua.

Esta opção por mostrá-lo sob o ângulo do ser fragilizado, mal se sustentando com sua arte, deixa de fora sua importante militância contra o império francês na Ásia. Instalado num barraco na vila Mataiea, em Papeete, capital do Taiti, escrevia cartas ao jornal local criticando o colonialismo francês. Durante a presidência de Sadi Carnot (1837/1894), no período de 1884/1894, não sofreu represálias. Pôde retornar à Paris, onde nasceu em 07/06/1848, descendente de peruanos, por parte da mãe Aline, filha da militante feminista e socialista, Flora Tristan.

A tendência política de Gauguin, portanto, se refletia nos temas de suas esculturas e, principalmente, de suas telas, heranças de suas origens quéchuas, vindos do império inca (1438/1533) e do Egito. Não à toa se prendem ao cotidiano das camadas populares e de suas crenças religiosas, em controlada palheta de cores, em tons vermelhos, amarelos e verdes. Há forte identidade entre ele e os taitianos pobres, razão de suas telas e esculturas tê-los como modelos em sua vivência cotidiana.

Gauguin dá corres às camadas populares

O que se desenrola na tela, contudo, é o Gauguin que Deluc e seus co-roteiristas constroem como o compulsivo artista plástico a buscar material e temas e modelos para suas telas. Aos poucos o que restou do que trouxera de Paris acabou e ele se vê às voltas com improvisações. Usa rústicos tecidos para seus quadros e economiza tinta. Muitas vezes prefere esculpir faces de homens e mulheres em pedaços de troncos a lembrar as esculturas incas. Suas forças exaurem e ele, de repente, se vê numa cama de hospital, tratado pelo médico francês Paul Jeanson (Émile Bernard).

De origem burguesa, irrequieto, acostumado aos pregões da bolsa de valores de Paris, onde trabalhou por vários anos e enriqueceu, Gauguin, deu-se conta de que, aos trinta e cinco anos, tinha de se dedicar à pintura. E valeu-se de suas economias para começar a pintar, sendo, portanto, autodidata. Só anos depois conviveu com Vincent van Gogh (1853/1890) e não trocaram experiências. Deluc, fiel à concisão narrativa, cortou estes períodos, iniciando-a com o anúncio de sua mudança para o Taiti à companheira dinamarquesa Mette Sophie Gad e aos cinco filhos.

Embora suas estadias no Taiti tenham sido no período de 1891/1893 e nas Ilhas Marquesas no de 1895/1897, Deluc e seus co-roteiristas a sintetizaram numa só. A narrativa então se dá num contínuo. O espectador não percebe a diferença entre os cenários de suas visitas a estas colônias francesas. Toda a ação se passa no campo, na mata e nos rios, onde ele se interage com a natureza. E sem ter com o que se alimentar, sobrevive de frutos silvestres e peixes pegos a mão ou arpões de galhos sob chuva.

Nestes entrechos vê-se a energia, a tenacidade e a busca de uma arte menos contemplativa. Se percebe pelos olhares, os gestos e o mergulho de Cassel no personagem. Ele é ao mesmo tempo interativo e físico, no tipo de filme em que o ator vivencia e interage com o meio, transmitindo ao espectador suas dores, alegrias e expectativas. De certo modo, Cassel se confunde com Gauguin. Envelhece e sôfrega com ele. Não só por estar todo tempo em cena, mas porque o “personagem” o traga.

Mas é na terceira parte do filme que Deluc monta elogiável alternância de sequências, uso do claro-escuro, em ambientes fechados e abertos. Muda, inclusive, a forma narrativa de entrechos para a trama com triângulo amoroso. É costume taitiano o homem não viver sem companheira. E, assim, a jovem Tehura (Tuheï Adams), a Teha´amana, na vida real, e o jovem Joteepa (Malic Zidi) passam a conviver com Gauguin. Ela como modelo de telas e esculturas e companheira, ele como aprendiz–escultor. Não se trata só de pintar e esculpir, ele tem de cuidar dela.

Deluc funde as duas estadias em uma

O espectador passa então a vê-lo não como o genial artista plástico em dificuldades, mas o homem que recomeçou a sentir o pulsar da vida. Teme a perda e não reprime a paixão. Anda à noite pela mata à procura da amada Tehura e tem ciúme de Joteepa. Mesmo assim, não se torna, na acertada na construção de Deluc, violento e possessivo, pelo contrário, controla seus impulsos sem agredir Joteepa ou Tehura. E, além disso, passa a expor e tentar vender suas telas e esculturas na feira de rua de Papeete para sustentá-la. Se já era difícil vendê-las em Paris, muito mais na limitada e pobre capital taitiana.

Não bastasse, se surpreende com a concorrência de Joteepa, flagrado por ele com esculturas de madeira numa banca num canto da rua. A troca de olhares entre eles traduz a um só tempo a rapidez com que seu aprendiz viu nas esculturas seu sustento e ele chegou à conclusão de nada mais ter a fazer na colônia francesa. Sequência silenciosa, estruturada por Deluc numa só tomada, a mostrar seu poder de síntese e duplo sentido, refletindo a intensa dramaticidade na vida do solitário Gauguin e na do jovem a mostrar-lhe seus limites. Não se trata mais de manter, mas de recuar.

É através desta opção narrativa que Deluc centraliza os quatro anos vividos por ele no Taiti. Porém, ele jamais deixou as Ilhas Marquesas. Suas posições anticoloniais, seu aberto apoio à independência das colônias, suas críticas nos jornais ao império francês e aos governos títeres e à Igreja Católica, o levaram à prisão, onde e faleceu a 08/05/1903. Hoje forma com Van Gogh (1853/1890) e Paul Cézane (!839/1906) o trio que criou o pós-impressionismo. Em uma carta a Mette, ele diz:”Sou um grande artista e sei disso. E é por ser tão bom que tenho suportado tanto sofrimento”.

“Gauguin – Viagem ao Taiti”. (Gauguin – Voyage de Tahiti). Drama. França. 2017. 101 minutos. Trilha sonora: Warren Ellis. Montagem: Guerric Catala. Fotografia: Pierre Cottereau. Roteiro: Edouard Deluc, Etiene Comar, Thomas Lilti, Sarah Kaminsky. Elenco: Vicent Cassel, Tuheï Adams, Paul Jeanson, Malic Zidi, Marc Barbe.

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