“Praça Paris”

Além do divã

Os traumas de moradora em aglomerado carioca e sua conflituosa relação com sua terapeuta são os temas deste drama da cineasta Lúcia Murat.

Em princípio este “Praça Paris” tem um bom leitmotiv para desencadear a ação. Foge das abordagens dos filmes que tratam dos conflitos e impasses dos menores e dos adultos envolvidos no tráfico de drogas nos aglomerados cariocas (Cidade de Deus/2002, de Fernando Meirelles/1955, e “Tropa de Elite I e II/ 2007/2010, de José Padilha/1967). A cineasta carioca Lúcia Murat (1948) desenvolve seu tema a partir dos maus-tratos sofridos pela ascensorista afrodescendente Glória (Grace Passô), moradora de um aglomerado carioca, durante sua sofrida infância.

Não bastasse, amplia sua estruturação dramática ao colocá-la no divã da jovem terapeuta Camila (Joana Verona), onde relata em detalhes o que ela e seu irmão, Jonas (Alex Brasil) sofreram. A sintética forma como Murat e seu co-roteirista Raphael Montes unem aglomerado, psicoterapia e tráfico, em poucas sequências para matizar a narrativa, contribui para o espectador entender os traumas da agora adulta Glória. É o estigmatizado no consultório psicanalítico, ao invés de estar estirado no cimento úmido de sangue, após ser metralhado pela polícia. É o deserdado em outro viés.

Murat usa a primeira parte dos 112 minutos do filme para configurar a distanciada relação terapeuta paciente. Glória relata a Camila a violência com que ela e Jonas eram tratados pelo pai e como ela o protegia. Há não só sofrimento, como falta de quem os defendesse, porquanto a mãe também morrera. Devido a isto, eles se tornam adultos introspectivos. Ela expõe ao amigo Samuel (Digão Ribeiro) sua dificuldade para encontrar um namorado. E Jonas, trancafiado num presídio, supre suas carências afetivas se deliciando com o frango com quiabo que a irmã o presenteia nas visitas.

Narrativa se desenvolve no divã da terapeuta

Visto desta maneira, trata-se de uma construção que se desenrola no divã, no elevador da UERJ (Faculdade Estadual do Rio de Janeiro), no apartamento de Samuel e na cela de presídio, dando ideia das angústias dos personagens. Eles são, na exposição de Murat, duas pessoas entre milhões de estigmatizados como afros e deserdados caucasianos moradores dos aglomerados, forçados pela desigualdade social. Contextos que fogem ao visto cotidianamente na mídia burguesa, mais interessada nas estatísticas dos mortos. Esta, porém, é só uma das sub-tramas deste “Praça Paris”.

A outra, não menos complexa, se dá de forma quase sub-reptícia, durante a segunda parte da narrativa. Não só pela costumeira postura distanciada dos terapeutas. Camila se mantém na baça luz do abajur, como se a ocultar suas reações ao que ouve. Suas perguntas a Glória são de quem a conduz de forma a fazê-la se livrar do que a atormenta. O que jorra das profundezas de sua mente é tão violento que ela se contém para evitar o desmaio. Não dá sinal algum de que hesita ao relatar o que foi submetida pelo pai diante do irmão, inclusive o que guarda para si, como a se resguardar. Passô, em sua composição, busca torná-la menos sofrida.

Diferente de Glória, Camila tem vida equilibrada, vive em bom apartamento, tem consultório fixo na UERJ. De classe média, frequenta as rodas de samba nas proximidades do morro com o namorado. Não é participativa, é mais o “estar ali”, como Murat flagra-a em duas sequências. De qualquer forma é “outro estou aqui”, tão típico de tais frequentadores. São, desta forma, sequências expositivas, não reforçam o conflito entre ela e o namorado, tampouco fazem a ação avançar. A esta altura, o espectador percebe que, como está sendo posto, a narrativa se encaminha para o fim.

Desenrolar da trama se torna thriller de fã

Como em qualquer filme não dá para se saber onde termina uma parte e começa a outra. São divisões às vezes aleatórias. A câmera de Murat e o espectador ficam à espera de que os personagens revelem o que escondem uns dos outros. Ou, às vezes, de uma ação vinda de fora do exposto através das sequências em curso diante deles. Esta vem por meio da interferência do comando do tráfico que impede Glória visitar Jonas e desencadeia o conflito entre ela e Camila. A aparente boa relação paciente-terapeuta se esboroa e elas se veem diante da fugidia verdade.

É então que as deficiências de roteiro, de construção narrativa e, inclusive, do sotaque português da atriz maranhense Verona se revelam. Muitas vezes não se entende o que ela fala, pois vive há muito em Portugal. Assim, o que se mostrava como esteio do ótimo tema sobre os deserdados que acabam no divã da terapeuta e no presídio muito jovem, se torna uma abordagem a respeito da mentira do paciente e o medo que a terapeuta tem de estar sendo manipulada. Decorre daí o choque entre ambas, pois Glória não quer perder o apoio de Camila e começa a persegui-la, inclusive invade a vida privada de quem começa a ter pavor dela.

Esta repentina mudança de tema central e de estruturação dramática transforma este “Praça Paris” num filme em que o fã persegue o ídolo (Estranha Obsessão, 1995, de Tony Scott,1944/2012), não lhe dando sossego. Daí sequências de thriller em alta tensão. Camila se torna irritativa e Glória se mostra perdida. Não sem razão, Murat constrói duas belas e eletrizantes sequências, uma delas magistral. Nesta, Camila, por medo de Glória, anda pelas ruas atemorizada. E se deparada com o pastor a pregar o Evangelho na Praça Paris e lhe aponta a salvação. Quer convertê-la e ela entra em pânico. Há confusão mental em sua reação e ela se afasta atordoada.

Murat mostra eficiência nas sequências de ação

A outra, não menos bem estruturada, mostra a eficiência de Murat ao dirigir cenas de ação. É a sequência na qual Camila ao caminhar pela passarela do metrô se defronta com Samuel que tenta entrar em contato com ela para ajudar Glória e é perseguido pelos seguranças. De forma circular, Murat retorna ao “filme favela” no qual o deserdado do aglomerado nunca escapa ao velho estima, mesmo se for trabalhador e, portanto, não ter ligação com o crime organizado. É mais uma homenagem ao filme-Noir (Casa de Bambu, 1955/Samuel Fuller, 1912/1997), do que um fio dramático que elucide, de fato, a razão do ocultado por Glória.

Isto se dá, desde o início, na estruturação dramática. Notadamente nos enquadramentos 3×4, em plano aproximado, e na iluminação do diretor de fotografia Guilhermo Nieto, não diferenciados nas sequências do clímax no divã. Quando Glória, enfim, se desmancha ficam claras as faltas de takes em flashback, a mostrar o que ocorre nas sequências de maus tratos de Glória e Jonas. Seria uma forma de, através de elipses e takes (cenas rápidas) e cores fortes (veja a iluminação e as cores de Tommaso Fiorilli, em “O Insulto”, de Ziad Doueiri), deixar antever as reações dela ao violento pai. O que reforçaria a ambiguidade que irritou e transtornou a terapeuta.

São questões técnicas, narrativas e dramatúrgicas que reforçam o tema central, não deixando lacunas que fragilizem a forma de contar a história. A concentração nas mentiras de Glória, no medo que a classe média, e não só ela, tem dos moradores dos aglomerados, configurada em Camila, e nas boas sequências de ação tornariam este “Praça Paris” outro filme. De qualquer modo, Murat deixa antever que, mesmo com estas imprecisões não se trata de uma obra descartável. Enfim, o que vale no cinema, como se dizia antigamente, é o que está na lata, hoje no DVD.

Praça Paris. Drama. Portugal, Argentina, Brasil. 112 minutos. 2018. Música: André Abujamra/Márcio Nigro. Montagem: Mair Tavares. Fotografia: Guilhermo Nieto. Roteiro: Lúcia Murat/Raphael Montes. Direção: Lúcia Murat. Elenco: Grace Passô, Joana de Verona, Allete Santos, Alex Brasil. Digão Ribeiro, Rafael D´Avila. Prêmios: Melhor diretora e melhor atriz (Grace Passô) do Festival de Brasília 2017.

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