O desconhecimento da ditadura é relativo?

Segundo notícia na imprensa, a opinião de alguns jovens é que a ditadura no Brasil foi coisa boa. Uma estudante de 18 anos teria declarado: "As pessoas dizem que era um tempo bom, que você podia ficar na frente de casa sem ser assaltado. As escolas eram tranquilas, hoje aluno bate em professor, as pessoas te roubam na sua casa….".

Chega a ser inacreditável o nível de ingenuidade e desinformação em uma fala dessas. Daí que esta semana, em conversa com uma jovem eu lhe disse que me espantava o quanto a ditadura era desconhecida pelos estudantes brasileiros. Isso para mim é tão evidente, que mal ouvi a sua resposta:

– Esse desconhecimento é relativo.

– Pois é – continuei –, isso é falta de ação dos mestres e educadores em sala de aula. O conhecimento não é incentivado em grandes reportagens da televisão ou do rádio. Então a ignorância…

– Não é ignorância. Isso é relativo!

– Hem? Relativo?! O que é relativo? Você quer dizer que os jovens desconhecem a ditadura 7 em cada 10 estudantes. É isso?

– Não, eles conhecem. Eu estou dizendo que tenho amigos e amigas que conhecem a ditadura, mas à maneira deles.

– Como assim? Eles conhecem a ditadura à maneira de Bolsonaro?

– Sim, também.

– Então desconhecem tudo. Não sabem de nada.

– Para o senhor. Para eles, não.

– Ah, é? Então existe uma maneira de conhecer a ditadura, que é a dos crimes contra a pessoa humana, e outra, que é a boa, legal e massa?

– Tudo é relativo.

– Sério? De onde você tira que tudo é relativo?

– É científico, sabia não?

Esse é um diálogo em que a pessoa tem que manter a indignação sob o gelo da pedagogia mais serena. Então continuo:

– Quer dizer que os assassinatos, torturas, destruição de mulheres grávidas.

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Presos desarmados mortos.

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Censura à música, ao cinema, ao teatro

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Tudo isso é só uma versão relativa da realidade? Eu lhe pergunto: tem outra versão? Eu gostaria muito de saber.

– O senhor está muito sectário. Eu não disse que concordo com a visão deles. Eu digo que eles têm um conhecimento da ditadura, que é deles. Tudo é relativo.

– Não é. Olhe, nem na Teoria da Relatividade tudo é relativo. A velocidade da luz é absoluta para Einstein.

Silêncio. Eu poderia dizer que do ponto de vista humano, infinitamente mais complexo que a mais nova descoberta de qualquer ciência natural, tudo não é relativo. Mas por mais indignação, que tive e contive, continuei:

– Há uma verdade objetiva, entende? Não é a minha verdade somente, não é a verdade deles, eleitores de fascistas, somente. Esse candidato, quando pesquisadores procuravam os restos de guerrilheiros mortos no Araguaia, chegou a falar: “quem gosta de osso é cachorro”. Isso não é relativo. É um dado da história, real, tanto da fala escarrada, que repete a ditadura, quanto a de jovens que morreram por um sonho mais alto. Entende?

Então eu lembrei uma anedota, que vinha a quebrar o clima daquele diálogo tenso, ao mesmo tempo que o ilustrava:

– Contam que no império romano, lá no coliseu, houve uma vez um cristão, um guerreiro sem igual, que estava resistindo às feras. Para a diversão do público, isso não podia continuar. Então enterraram o bravíssimo homem até o pescoço, deixando só a cabeça dele de fora. E soltaram o leão. Aí, quando o animal passou perto da cabeça do homem, ele deu uma dentada que arrancou os testículos do leão. A fera ficou urrando, uuuuu, rôoooo. Aí o público se levantou indignado: “Jogue limpo, seu safado! Jogue limpo, criminoso!”. . . Percebe? Este é o relativo: para o público do coliseu, o jogo limpo era arrancar a cabeça do cristão. Mas para o enterrado, o justo era arrancar o saco da fera. Esse é o relativo.

A jovem sorriu e bem entendeu o relativismo. Ganhamos nosso dia.

Depois da nossa conversa, vim meditando que na cadeia do “tudo é relativo” a ignorância de muitos vai até o relativismo, que segue até a negação do holocausto. Para os nazistas, é claro, jamais houve algo semelhante. Os cadáveres empilhados como papel seco, as câmaras de gás e fornos crematórios de pessoas são mentira.

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Einstein, fora dos números, certa vez escreveu: “Se alguém aprova como meta, por exemplo, a eliminação da espécie humana da face da Terra, não se pode refutar esse ponto de vista em bases racionais”. Mas ainda assim tentamos, como se pudesse haver uma racionalidade fora do real e da justiça. Notem: como poderiam ficar os assassinatos de prisioneiros desarmados, com os miolos pregados nas paredes da prisão, no tempo da ditadura? Seria tudo feito por exceção de alguns desalmados, sem regra de comando, nos “porões”? Ou seriam, como os fãs da ditadura falam, crimes contra a pessoa humana jamais cometidos pelos carrascos brasileiros? Esses corpos massacrados são mentira das famílias dos mortos, falam. Assim como é mentira que houvesse cartazes nas ruas com fotos e nomes de patriotas, corajosos combatentes, sob o título de “Terroristas procurados”.

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Isso é relativo. Mas bem poderíamos dizer: “Isso e relativo à ditadura”.

Para quem já foi professor de jovens, e de muitos deles de área de risco, porque todo jovem sempre está em área de risco, material ou de angústia; para quem teve filhos na idade dos 20, que acompanhou os conflitos a ponto de explosão de filhos de amigos que não adotaram a tática da conformação… Se me entendem, com tal experiência, quando sei de jovens do povo que votam em fascistas, quando me falam que estudantes de escolas públicas supõem conhecer a ditadura, mas uma ditadura sem a longa noite de infâmia, quando sei de jovens assim, é como uma traição dentro das nossas paredes, dentro do coração, porque eles se desnorteiam contra a liberdade, um bem muito precioso, tão ou mais importante que a vida. O dado objetivo, exterior, do cumprimento de dever eleitoral, cheio de pesquisas e números não nos atinge. Mas o desconhecimento histórico do que vivemos em pessoas que mais acreditamos, sim, isso fere. É lamentável, é profundamente lamentável a existência de um pobre de direita. Mas existir um jovem pobre, um jovem de futuro, com a crença de que foi boa a ditadura é trágico.

Na próxima semana, retorno.

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