“O Insulto”

Represadas motivações

Ao tratar de desavença entre libanês e palestino, cineasta Ziad Doueiri revolve represados conflitos étnicos, políticos e históricos de seu país

Na verdade, não há apenas uma linha narrativa a transcorrer diante do espectador neste “O Insulto”. À medida que o leitmotiv acionado pela água jogada pelo mecânico cristão Tony Hanna (Adel Karan) no engenheiro e refugiado muçulmano Yasser Salameh (Kamel El Basha) através da calha de seu apartamento no bairro de Fassouh, em Beirute, ela irá se desdobrar em outras e outras. E no desfecho terão sido trançadas pelo cineasta libanês Ziad Doueiri (1963) e sua co-roteirista Joelle Touma, de forma a ampliar as motivações de Hanna e mesclar os conflitos étnicos, políticos e históricos à trama. Não bastasse, eivados de ódio, violência e revolta.

O surpreendente é Doueiri o fazer sem introduzir sub-tramas, prefere encadear a ação de forma linear, mas ao estilo leque que se abre para expor as fraturas ainda expostas de seu país. O que emerge é a tendência do já maduro Hanna exacerbar os ânimos e tentar subjugar o introspectivo Salameh, à beira da terceira idade. Doueiri é minimalista ao flagrá-los em curtas sequências diante da porta da sala do apartamento e da oficina mecânica de Hanna, onde os dois se confrontam. Porém, nenhum deles se mostra disposto a fazer o que o outro tenta lhe impor, pois cada um acha, a seu modo, que a suposta razão, na qual acredita, lhe favorece.

Este imbróglio que beira ao absurdo permite a Doueiri situá-lo numa Beirute que surge em várias sequências com suas cordilheiras de prédios em cores esfumaçadas a configurar o estado psicológico dos personagens. Não é ebulitiva, mas dotada de vivacidade e história. É nela que Hanna vive no Fassouh, bairro média, com a companheira Shirina (Rita Hayek), grávida de sua filha. Doueiri contrapõe seu universo ao de Salameh e sua companheira Manal (Christine Choueiri). O bairro de refugiados em que vivem surge numa tomada aérea, cheio de prédios manchados, ruas tomadas pelo lixo e ocupadas por crianças a brincar e adultos retraídos.

“Nós somos os negros árabes”

Dá para perceber a posição de classe de um e outro na sociedade libanesa, focada por Doueiri, de modo a dar ao espectador a posição do palestino na sociedade libanesa. Numa discussão com Hanna, Yasser se insurge com a perseguição que lhe é empreendida dizendo que “nós (palestinos) somos os negros dos árabes”. Entretanto, como registra a história, eles chegaram ao Oriente Médio ainda no século I DC, sob o Império Romano, na época de Públio Élio Adriano (76/138), e só depois novos árabes vieram ali se fixar. Hoje são acossados por árabes e judeus.
Não bastasse, Salameh é duplamente acuado. A construtora para a qual trabalha não o registra ou lhe paga os direitos trabalhistas, mesmo sendo engenheiro, formado na Universidade do Cairo. Por ser refugiado palestino, a lei não lhe garante o mesmo que aos libaneses. Talal, gerente da construtora (Talal Al Jurdi) admite, inclusive, que ele é um trabalhador ilegal, São sub-reptícias espertezas que o espectador apreende em meio aos confrontos levados aos tribunais por Hanna, em sua insistência de processar Salameh por se sentir ofendido. Há, contudo, uma ofensa maior de sua parte, por ter desejado que seu “inimigo” fosse exterminado.

No entanto, a tessitura dramática deste “O Insulto" não se sustenta apenas no confronto Hanna/Salameh. Ele se completa com as sequências em que Shirina se opõe ao modo como Hanna busca a “desculpa” de Salameh. Inclusive o acha culpado por tê-lo maltratado, afinal foi ele que jogou água no palestino. Também Manal critica seu companheiro por não pedir desculpa e encerrar o confronto. Estas sequências de contraponto se completam com cenas do casal Hanna/Shirina, em carinhos à filha a nascer. “Ela escuta se temos raiva ou não”, diz Shirina, exultante.

Geogea: conflitos estão superados

Devido ao impasse entre o cristão libanês e o muçulmano, um exigindo mais que desculpa, o outro ofendido demais para fazê-lo, o confronto acaba no tribunal. Diante do juiz, Hanna tem a mesma atitude arrogante, agressiva, ao se defender, por ter-se negado a contratar advogado. O que ocorre é seu ataque centrado tanto em Salameh, quanto no próprio magistrado, inclusive afrontando sua autoridade, ao lhe dizer que ele, ao declarar que as provas eram frágeis e liberar seu “inimigo”, “o havia feito de caso pensado”. A partir daí ele entra num redemoinho.

Num roteiro em que a trama não se manifesta em falsas pistas ou criando frágeis suspense e clichês, Doueiri prefere introduzir fios dramáticos, como os do escritório do renomado advogado Wajdi Wehbé (Camille Salameh), a cobertura da mídia, a participação das organizações dos cristãos libaneses e dos palestinos e da multidão de homens e mulheres, interessados no que estava em questão no Tribunal de Apelação. Em causa, além das “desculpas”, a indenização de 120 mil dólares a ser paga pelo denunciado, caso seja declarado culpado. O caso, assim, foge aos estreitos círculos familiares de Hanna e Salameh para ganhar todo Líbano.

Desta forma, o que estava em causa agora não era mais quem era culpado ou não. Tampouco os métodos agressivos e desrespeitosos de Hanna, mas como reagiam as forças políticas libanesas, a começar pelo Partido Cristão Libanês, liderado pelo político Samir Geogea (Rifaat Torbey). Ao ser questionado pelo apresentador do canal de TV, sobre se havia influência da organização na iniciativa de Hanna, ele desmente e diz que os problemas com os palestinos não existiam mais. E que os conflitos que provocaram milhares de mortos durante a guerra civil (1975/1991) estavam superados.

Ofensa a Hanna cai no vazio

Os confrontos entre manifestantes libaneses cristãos e palestinos nas ruas e nas cadeiras do Tribunal de Apelação o desmentiam. Principalmente ao se ouvir a insuflação do falecido líder direitista dos falangistas cristãos e presidente morto em atentando, Bashir Gemayel (1947/1982): “Pelo bem dos nossos filhos, para que não acabem como refugiados, para que não se comportem como o refugiado palestino que vai de um país ao outro desmontando tudo por onde passa, que bebe dos poços e cospe dentro”. Wejbé diz que é um “discurso patriótico”, ao que a esperta defensora de Salameh, Nadine (c) responde:” para um palestino é detestável”. É ela acaba, assim, desmontando os ardis dele.

Se vê então as motivações de Hanna se esboroar diante do que sustentava, realmente, seu processo no Tribunal de Apelação contra Salameh. Não era mais a ofensa, devido à calha fora dos padrões legais, tratava-se do rancor aos palestinos que mantivera por décadas e agora ressurgira, sobretudo, por ver nele a oportunidade de, enfim, vingar-se do que sofreu supostamente por culpa deles. E o vídeo exibido pelo cristão libanês Wejbé, sobre o confronto de Damour (21/01/1976), que chegou à vila de Sadiyat, onde vivia e nascera, fizeram aflorar o reprimido rancor.

Não um episódio qualquer, estavam em aberto confronto as forças cristãs libanesas de direita, apoiadas por Israel, de um lado, e a OLP (Organização para Libertação da Palestina) e as forças do Movimento Nacionalista Libanês, de outro. No chamado massacre de Damour teriam morrido 22 pessoas e 22 mil se tornado refugiadas. Hoje ainda se tenta superar as controvérsias sobre os reais responsáveis e os motivos do ataque à pequena cidade, produtora de bananas, à beira mar. Se Wejbé pretendia obter vitória na exibição do vídeo, o resultado foi o contrário.

Doueiri equilibra os momentos históricos

Com este tratamento ficcional de momentos históricos de seu país, Doueiri procura se equilibrar. Contribui para isto, o tratamento cromático do diretor de fotografia Tommaso Fiorilli para matizar os estados psicológicos dos personagens, usando verde, amarelo, branco e vermelho, ou sombras e esmaecidas luzes. Principalmente nas sequências em que Hanna e seus amigos perseguem quem invadiu sua oficina e nos confrontos de rua entre os militantes cristãos e palestinos. Sua narrativa termina por mostrar o quanto o ódio permeia ainda o solo libanês. Enfim, a realidade muitas vezes aponta os spots para onde os culpados anseiam por trevas.

O Insulto
. (L´Insulto). Drama. Bélgica, França, Líbano, Chipre, EUA. 2017. 112 minutos. Música: Eri Neveux. Montagem: Dominique Marconde. Fotografia: Tommaso Fiorilli. Roteiro: Ziad Doueiri/Joelle Touma. Direção: Ziad Doueiri. Elenco: Adel Karan, Kamel El Basha (Prêmio Melhor Ator do Festival de Veneza 2017), Camille Salameh, Rita Hayek, Christine Chouveiri, Diamand Abou Abboud. Filme indicado ao Oscar 2017.

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