“O Processo”

Entranhas do golpe

Os ardis e os meandros do golpe contra Dilma Rousseff no Senado em 2017 são os temas do documentário da brasiliense Maria Augusta Ramos.

Escrever com imagens a ilustrar a história imediata, ainda em ocorrência, como o faz a cineasta brasiliense neste seu documentário “O Processo”, torna mais inquietante os fatos que a constrói e lança luz sobre a atuação de seus principais protagonistas. Sua câmera percorre plenário, corredores do Senado e praça do Congresso para flagrar deputados, senadores, juristas e manifestantes pró e contra, em plena ebulição do malsinado golpe contra a então presidente Dilma Rousseff (14/12/1947), eleita democraticamente em 2010 e em 2014 e deposta em 29/08/2016.

Com esta estruturação, Ramos põe o espectador diante dos impasses que ainda o afligem, cujos intervenientes surgem na tela com suas urdiduras e interesses. De um lado estão as forças democráticas, progressistas, contrárias ao retrocesso, de outro as forças reacionárias, liquidacionistas, defensoras do capital multinacional, que engendraram o golpe. Não se trata de construção cênica para atestar o explícito confronto, mas contribui para Ramos enfatizar o tenso clima e o que está sendo posto em cheque: a construção de um Brasil independente, próspero, inclusivo.

A chave deste embate se explicita através das imagens captadas por Ramos com acuidade exemplar, num documentário de Cinema Verdade, ao registrar os debates na Câmara dos Deputados (29/12/2015) e na Comissão Especial do Impeachment (CEI) no Senado (04/08 a 31/08/2016) e os configurar como história imediata. Esta, nos tempos atuais, transcorre em alta velocidade e as consequências logo mostram seus efeitos. Na ausência de motivos reais, os golpistas liderados pelo PSDB e MDB, apoiados pelos grandes empresários e a mídia burguesa urdiram o golpe com falsas pistas.

Juristas dão justificativas para o golpe parlamentar

Centraram suas acusações e falsas denúncias em suposta quitação de contas do Governo Dilma sem a devida cobertura orçamentária, as chamadas pedalas fiscais. Para dar “credibilidade” às suas urdiduras e sustentar o golpe parlamentar em curso se apoiaram no pedido de impeachment tecido a caráter pelos juristas Miguel Reale Jr (PSDB), Hélio Bicudo, ex-PT e Janaina Conceição Paschoal (25/06/1974). A deposição, encontrava, assim, sua sustentação jurídica e constitucional sob suspeita.

Contudo, Ramos inicia seu documentário no transcurso em que o pedido de impeachment tramitava na Câmera dos Deputados sob a guarda de Eduardo Cunha, então seu presidente. E o espectador tem a impressão de que a projeção deste “O Processo” está girando ao inverso. Cunha surge fantasmagórico, cercado pelos repórteres numa entrevista coletiva, em que é pressionado a revelar se tem ou não contas na Suíça e se nega a responder. Age como acusador, impune, afirmando que o PT lhe fez proposta para engavetar o pedido de impeachment, quando fazia parte com Temer e outros asseclas da conspiração contra Dilma Rousseff.

A este entrecho do filme soma-se logo à sequência na qual a CEI emerge como o ápice do golpe. Os urdidores se materializam nas figuras dos senadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), com este se dirigindo a seu presidente, o senador Raimundo Lira (MDB-PB) e ao senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), seu relator. Em instantâneo, vindo de um lado do plenário da sala da CEI, há ligeira conversa em torno das articulações sobre quem assumirá a presidência da República. Fala-se no senador Renan Calheiros (MDB-al) e outro senador o contesta, afirmando que Temer assumirá a presidência da República.

PSDB repete a golpista UDN

Fosse só por esta menção seria “factível””, entretanto, a ela soma-se a lista de propostas que confirmam a urdidura do golpe. O interlocutor menciona rapidamente as reformas trabalhista e previdenciária, a privatização do pré-sal e logo cessa a conversa. O espectador, por mais desatento que seja, entende as razões da consumada deposição de Dilma Rousseff. O PSDB confirma sua urdidura ao estilo UDN (União Democrática Nacional/1945/1965), canibalizada pelo Golpe Militar de 64. Tinha pressa, como denuncia o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso (PT), para consumar o impeachment no Senado, antes que a farsa fosse desmontada.

Entretanto, ao montar seu filme, Ramos o encadeia de forma a permitir ao espectador entender como os golpistas tramaram cada etapa do que intentavam. Principalmente nas duas sequências em que a advogada paulista Janaina Pascoal preenche a tela com sua figura matreira. Entre risos e trejeitos se apresenta como defensora da família e das crianças e… patriota. Seus gestos e olhares logo a transmudam em interprete de Ópera Bufa dos trópicos. Não sem a plateia do Belas Artes de Belo Horizonte, numa quarta-feira, se irromper em risos e apupos por sua performance.

Em outro tom, agora mais contida, nem por isso menos histriônica, ela volta a encenar diante das câmeras seu exercício da dissimulação, ao dizer que àquela altura da CEI que “não foi pelas contas (públicas no Governo Dilma que pediu o impeachment), mas porque não aguentava mais. Foi pelas crianças e o povo brasileiro” E as lágrimas rolavam. Seu “não aguentava mais”, significa que os golpistas temiam o pós-Dilma Rousseff com outros oito anos com Lula. Este o real motivo do golpe. E como afirma o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), numa alternação com Janaina Pascoal: todo seu empenho se deve aos R$ 45 mil reais que lhe foi pago pelo PSDB (para urdir a seis mãos o pedido de impeachment de Dilma).

Anastasia ”esquece” seus conhecimentos jurídicos

Diante deste complô, de nada valeram os esforços do ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, para convencer os senadores e a mesa da CEI, de que três decretos confirmavam a legalidade do pagamento das despesas pagas pelo Governo Dilma Rousseff. Dentre elas o Plano Safra, destinado a cobertura financeira da produção agrícola do país. Tampouco a argumentação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, afirmando que o relator Anastasia, embora jurista, “não conseguira se libertar da paixão partidária”. Seu relatório acabou sendo aprovado por 38 senadores.

Atenta ao avançar para a destituição de Dilma Rousseff, Ramos concentra sua câmera nas conversas entre dirigentes e parlamentares. Numa delas a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (06/09/1965) e o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República (2011/2015), Gilberto Carvalho (21/01/1951) fazem mea-culpa sobre os governos do PT. Ela diz que o partido se afastou das massas e ele enfatiza que “fomos deixando isso acontecer e perdemos o controle das coisas”.

O golpe avançara célere. Ramos pouco se detém no julgamento sob a presidência do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski (11/05/1948). Por 61 votos a favor e 20 contra, no dia 31/08/2016, o golpe foi consumado, com Dilma Rousseff mantendo seus direitos políticos, inclusive de candidatar-se ao Congresso Nacional. Nas sequências em que surge calma e decidida, afirma que foi vítima de um golpe e que nenhuma infração cometeu. Ao seu redor seus ministros e secretários e apoiadores gritavam: Dilma guerreira! Dilma Guerreira!

Golpistas vivem dias de queda

Também conta neste “O Processo”, como fato da história imediata em construção, é o pós-golpe e o que aconteceu às suas principais lideranças. I – O urdidor-chefe, senador Aécio Neves (10/03/1960): frustrado com sua derrota nas urnas para Dilma Rousseff é hoje pato manco. Perdeu seu eleitorado e está prestes a enfrentar cerca de oito processos na Justiça Federal; II – Eduardo Cunha (29/09/1958): cumpre sentença no Presídio da Papuda em Brasília, por um de seus processos na Justiça Federal; III – Michel Temer (23/09/1940): presidente mais impopular do Brasil, cumpriu parte do projeto do golpe, entre eles a patronal Reforma Trabalhista. E claudica no poder à espera de 31/12/2018.

Enfim, Ramos com este filme foge ao documentário 3×4, que descreve o que as imagens já mostram ao espectador. Prefere que ele mesmo construa as sequências e apreenda seu significado. Sobretudo ao mostrar o pós-impeachment com Temer pondo as Forças Armadas para reprimir os trabalhadores que se insurgiam contra suas reformas, em 28/04/2017. Começa a partir daí seu método de tratar qualquer crise não com negociação, mas chamando-as para ameaçar, como faz agora com os caminhoneiros grevistas. Nenhum plano há para os 28 milhões de desempregados. Os direitistas de verde-amarelo, com seu patriotismo de grife estimulado pelo Capital, se enfurnaram. Também são culpados.

O Processo”. Brasil. Documentário. 137 minutos. Fotografia: Alan Schuersberg. Montagem: Karen Akerman. Roteiro/direção: Maria Augusta Ramos.

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