“O Jovem Marx”

A perenidade do espectro

Em tempo de fratura neoliberal, filme do cineasta haitiano Raoul Peck traz ao debate as teorias e as experiências revolucionárias de Marx e Engels.

Não sem razão, o cineasta haitiano Raoul Peck (09/09/1953) constrói este “Jovem Marx”, lançado agora em DVD, como se convidasse o espectador ao debate sobre o exercício da política, das relações capital-trabalho, de seu direito à greve sem violência policial ou demissão e a construção de uma sociedade sem classes. Durante 117 minutos assistirá a debates acalorados do filósofo, economista e jornalista alemão Karl Marx (1818/1883) e de seu parceiro ativista, filósofo e administrador alemão, Friedrich Engels (1820/1895), com burgueses e os equivocados teóricos.

No evoluir da narrativa verá, além disso, que se trata da construção teórica e prática de Marx e Engels centradas no materialismo científico e na edificação do Comunismo. Toda a ação se dá a partir da expulsão de Marx e sua companheira Jenny von Westphalen (1814/1881) da Prússia, hoje Alemanha, em 1843. E que, estando em Paris, onde a ebulição política traz ao debate com ele o filósofo e ativista francês Pierre Proudhon (1809/ 1865). Não se tratava apenas de um se opor ao outro, mas de fundamentar teoricamente suas teorias para conquistar novos adeptos para sua causa.

Assim, Peck (Lumumba, 2000), coloca o espectador diante de reivindicações ainda centrais para o proletariado atual, mas negadas pelos neoliberais. Em sua época, Proudhon defendia o direito de todo homem à terra, dizendo que ela é um roubo e que deveria ser abolida. Marx chama sua proposta de abstrata, pois não questiona a propriedade privada dos burgueses, porque eles, sim, negam o direito de o proletariado ter sua terra. E não se limitava a contestar socialistas utópicos como Proudhon, unia a teoria à prática ao organizar e conscientizar o proletariado da época.

Operariado é forçado a vender sua mão de obra

Num debate em Paris com operários franceses lhe explica “que sua força de trabalho é vendida como mercadoria aos seus empregadores. Exceto que vocês não são livres. São forçados a vendê-la para sobreviver”. E ao ouvir de um deles que nada irá mudar, o esclarece que “o capital quer que pensemos assim. Mas tudo muda. Tudo pode mudar, Nada é estável. Todas as relações sociais; escravidão, servidão, trabalho assalariado, são históricas e transitórias. A burguesia adora falar em liberdade, mas é só para ela, não para vocês. O jogo não é justo”.

Na primeira parte da narrativa, Peck mescla o debate teórico estimulado por Marx entre camadas sociais que se opunham à nascente burguesia europeia e o proletariado francês, alemão e belga, através do jornal Gazeta Renana, publicado pelo magnata, filósofo, escritor e político alemão Arnold Ruge (1802/1880). Foi assim que se tornou conhecido e foi deportado pelo rei Frederico Guilherme IV (1795/1861), da Prússia, para a França em 1843. Foi onde se reencontrou com Engels na casa de Ruge, depois de terem participado de debates na Prússia e se distanciado.

O filme se torna, a partir daí a narrativa da amizade entre os dois construtores das teorias e da organização dos proletários europeus e, depois, não só deles. Peck e seu co-roteirista Pascal Bonitzer, desde o início alternam sequências que mostram as atividades de ambos. A de Engels, a mais emblemática, por mostrá-lo na tecelagem Ermen&Engels, em Manchester, Inglaterra, às voltas com o confronto entre eu pai, Friedrich Sr. (1796/1860) e a tecelã Mary Burns (!821/1863), após a amiga perder os dedos de uma mão. E fez todos os tecelões cruzaram os braços.

Tecelã perde os dedos na máquina

Arrogante, Sr. ameaça: “O reparo será descontado do salário dela. E vocês tem sorte de eu não demitir a todos”. A resposta de Burns é lapidar: “Dez dedos é tudo que valemos? E quando os perdermos seremos trocadas? Agora, sou escrava da Fiação Ermen & Engels? ”. Indignada, ela deixa a fábrica, observada por tecelões e tecelãs, muitos deles crianças, seguida apenas por uma de suas companheiras. Sr. teria ido mais longe, caso seu filho Engels não intervisse. Após ligeiro entrevero entre os dois, o jovem de 24 anos, deixa-o, irritado. Isto, em suma, foi o que fez história.

Com estas sequências, Peck expõe a semente da revolucionária obra de Engels: “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845) ”, na qual denuncia as precárias condições de trabalho do proletariado inglês no século XIX. Em longos movimentos de câmera segue Engels pelas ruas molhadas, abarrotadas de homens, mulheres e crianças sob a neve. Emergem assim as contradições do capitalismo nascente na Inglaterra, justamente em Manchester, onde o proletariado surgia como a classe mais explorada, enquanto o Império Britânico se expandia para a Ásia e a África.

A fotografia de Kolja Brandt com seu claro-escuro, em planos aproximados, capta ao mesmo tempo a atmosfera opressiva, o estado psicológico dos personagens em suas roupas escuras, os ambientes mal iluminados, os rostos macilentos e os olhos a traduzir a fome e a penúria. E passeia pelos telhados e chaminés a exalar fumaça e fuligem. O próprio Engels ao percorrer os becos de Manchester percebe o quanto havia de exploração configurada nos lúmpens e proletários nas ruas e nas tabernas.

Marx luta também para seu sustento

Deste modo, Peck estrutura os núcleos dramáticos constituídos pelas relações de Marx (August Diehl) com a família: Jenny (Vicky Krieps), sua filhinha Alphonsine, a babá Lenchen (Marie Meinzenbach) e, às vezes, o amigo Proudhon (Olivier Gourmet) em debates em Paris. Engels (Stefan Konarske), seu pai (Peter Benedict) e Mary Barns (Hannah Steele) formam o núcleo de Manchester. É em torno deles que se alternam as sequências, até Engels se ligar a Marx, em Paris, onde entram em contado com a Liga dos Justos, cujo lema era “Todos os Homens são Iguais”.

Na segunda parte do filme estes núcleos se entrelaçam por meio da expulsão de Marx da França pelo Imperador Napoleão III (1808/1873), que muda com a família para Bruxelas. É onde Engels passa a conviver com ele e torna-se amigo de Jenny. E vê que ela não só acompanhava Marx aos debates, como tinha ideias próprias. Inclusive podendo viver na riqueza, devido à sua origem aristocrática, levava uma vida modesta. Ela lhe responde: “Eu escapei do tédio total (…). Não há felicidade sem revolta contra o velho. É nisto que acredito. Espero ver esse mundo velho rachar em breve”.

Além disso, Peck dota seu filme de sequências em que despe Marx e Engels de sua áurea revolucionária, mostrando-os como simples seres humanos. Vemos Marx às voltas com os problemas de sustentação da família, com a doença da filha de colo, cobrando de Ruge o pagamento das matérias feitas para a Gazeta Renana e Engels lhe socorrendo. Ou surgindo em casa quando o senhorio está prestes a despejá-lo com a família e paga-lhe o que lhe deve para alivio seu e de Jenny. E Engels sendo cobrado pelo pai por se afastar da empresa, onde era o contador e era pago por isto.

Jenny aconselha Marx a participar de Congresso

Com estas construções dramáticas. Peck equilibra os núcleos narrativos na terceira parte do filme. Torna as sequências dos debates, dos confrontos e dos congressos tensas, cheias de suspense. Como ocorre quando Marx não vê razão para participar com Engels do decisivo Congresso da Liga dos Justos em Londres. E Jenny o aconselha a não perder tal chance. “Não seja bobo, é uma oportunidade única. Parece um movimento poderoso com filiais na Suíça, na Alemanha(…). Se for eleito não estará mais sozinho. Juntos poderão criar um exército, que pode crescer e se tornar invencível”.

O desfecho desta ideia, confirmada pela história é que as teorias de Marx e Engels se tornarem a base de onde o movimento comunista se alastrou pelo planeta. A tentativa do socialista utópico Wilheim Weitling (Alexander Scheer) de afirmar que “a minha intenção não é criar novas teorias econômicas. Este não é meu objetivo. Sou contra a cultura da inovação a qualquer custo. Todo poder aos trabalhadores para estabelecer a harmonia universal. Só mil proletários armados, apoiados por 40 mil criminosos poderia derrubar a tirania burguesia”.

Sente-se em Marx ojeriza à visão fundamentalista de Weitling. Sua contestação é tão revolucionária quanto premonitória. “Agitar os trabalhadores sem (lhes) oferecer uma doutrina construtiva é uma jogada desonesta e pretenciosa com um aspirante a profeta de um lado e idiotas do outro. A ignorância jamais ajudou ninguém! ” Mas é no auditório do Hotel Belleuve, em Londres, maio de 1846, no Congressos da Liga dos Justos, que Engels completa estas ideias. ”O antagonismo entre o proletariado e a burguesia só pode levar a uma revolução completa. Desde que as classes existem, a última palavra das ciências sociais sempre será luta ou morte”.

Manifesto Comunista se mantêm atual

Seu complemento lança uma pá de cal nas ideias de Weitling:”A revolução industrial criou o escravo moderno. Esse escravo é o proletariado. Ao se libertar, libertará toda humanidade e essa liberdade tem nome: comunismo”. E ocorrem dois fatos de transcendental importância: I- O plenário do Congresso da Liga dos Justos apoiou a mudança do slogan de “Todos os Homens são Irmãos” para “Trabalhadores de todos os países, unam-se”; II – E o nome do movimento se torna: Liga dos Comunistas. E, como alertara Jenny, Marx ampliou seus horizontes.

Todo transcorrer da narrativa deste “O Jovem Marx” cobre cinco anos, ou seja, de “1843 a 1848”. Seu ápice correu o Planeta, estimulou debates e organização de partidos e sindicatos e estudos das obras de Marx e Engels. Dentre eles “O Capital”, escrito a partir de sua mudança com a família para Londres, após a expulsão de Bruxelas, em 1848. Não sem antes, os dois parceiros lançarem o seminal “Manifesto do Partido Comunista”, cuja abertura ainda prova reflexões planeta afora:

Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo (..). A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos. Em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”. Não são apenas frases, mas um guia para as ideias e a contínua ação. Peck, ao transformar as frases de Marx e Engels em vivos diálogos, permite ao espectador unir a reflexão à emoção e serve como guia para debates e aprendizado. Nada melhor para os 200 anos (18/05/1818 a 18/05/2018) de Marx, revolucionário comunista.

O Jovem Marx (Le Jeune Karl Marx) França/Alemanha/Bélgica. Drama político. 2017. 117 minutos. Trilha sonora: Alexei Aigui, Montagem: Frédérique Broos. Fotografia: Kolja Brandt. Roteiro: Pascal Bonitzer/Raoul Peck. Direção: Raoul Peck. Elenco: August Diehel, Stefan Konars, Vick Frieps, Hannah Steele, Olivier Gournet, Alexander Sheer.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor