“Ciganos da Ciambra”

Nas teias das ruas

Cineasta ítalo-estadunidense Jonas Carpignano une deserdados ciganos e africanos para mostrar lado terceiro-mundista da Itália da atualidade.

Há um espaço urbano na pequena Ciambra, da Calábria, que delimita as áreas das comunidades cigana e africana da italiana neste “Ciganos da Ciambra”. Mostra, assim, que elas, embora preservem suas identidades, são igualmente deserdadas. O elo construído pelo diretor-roteirista ítalo-estadunidense Jonas Carpignano (1984) para espelhar suas carências, conflitos e ações é o adolescente cigano Pio Amato, de 14 anos. E ao transitar nestes espaços, ele expõe a imagem terceiro-mundista da Itália na atualidade, com seus impasses e crises político-econômico-sociais.

Desde o início desta construção narrativa, Carpignano configura as acentuadas diferenças entre cada núcleo dramático. A começar pelos ciganos, centrada nas idas e vindas do garoto Pio em sua bicicleta pelas vielas e ruas de terra. Entra pela precária casa de alvenaria habitada por ele e sua numerosa família cigana, igual à de qualquer aglomerado carioca, com suas ruas de terra, fios de energia elétrica e redes de água irregular. Inclusive sem linhas de transporte coletivo e unidades escolares e de saúde. Contudo já se aculturaram e tentam sobreviver às duras penas.

Diferente deles, os italianos vivem em ruas asfaltadas, com calçadas e boas casas de alvenaria e só eventualmente se relacionam com eles e os africanos. Estes formam com os árabes as comunidades de excluídos na Europa, vítimas das disputas geopolíticas dos EUA e seus aliados da União Europeia com os países do Oriente Médio para controlar as reservas de petróleo ainda existentes. Assim como as de minerais das frágeis nações africanas. O que acabou por destroçar o Iraque e a Líbia e tentam fazer o mesmo com a Síria. Enquanto os africanos vivem na órbita de seus ex-colonizadores, que se apropriam de suas reservas minerais. Daí vivem de expedientes em Ciambra, como deixa antever Carpignano em seu filme.

Pio se une à avó para suas ações

Esta sutil estruturação dramática lhe facilita transitar de um núcleo de ação ao outro, em ligeiras transições, dando ao espectador ideia da complexidade narrativa deste “Ciganos da Ciambra”. São eles que o ajudam a fugir à linearidade, pois o fio condutor da ação é o rito de passagem de Pio, em sua ânsia de, aos catorze anos, aderir aos roubos de carro e peças feitos por seus irmãos Damiano e Rocco. A ponto de segui-los pelo mato, ruas de terra, pular murro, faz gatos e puxar carros. Espelha-se neles, inclusive, ao fumar, beber e frequentar pistas de dança à procura de namorada. E, aos poucos, ganha inusitada experiência.

Carpignano encena sua evolução com sensível equilíbrio, não o tornando cruel ou ingênuo diante dos africanos e italianos. Numa eletrizante sequência, ao ver os irmãos acossados pelos carabinieris, os PMs italianos, ele não hesita em correr para a viatura e deixá-los a pé. Outras e outras ações temerárias se sucedem, até que fica sozinho para garantir o sustento da numerosa família. Não é mais o inexperiente garoto, aconselhado pelos irmãos a não se intrometer em suas arriscadas e perigosas ações. Com eles fora de ação, se une à avó Iolanda e passa a agir com extrema agilidade e competência, ampliando sua área de atuação.

Com equilíbrio, Carpignano usa a figura da mama, autoridade maior da família característica dos filmes italianos das décadas de 50,60,70. Em “Rocco e seus irmãos" (1960), Luchino Visconti (1906/1976) compõe uma Rosaria (Katina Paxinou, 1900/1973) sofrida. Aqui é Iolanda Amato, a avó equilibrada e afetiva, que se vê acuada pela penúria da família. Ainda que refute as ações do neto, termina por aceitar sua “contribuição” formando com ele uma “boa dupla”. O neorrealismo emerge, portanto, como forma de Carpignano flagrar seu país com o olhar de Pio rente ao asfalto ou do alto do morro, onde ele reflete sobre sua vida numa Ciambra que o excluí.

Africano ensina a Pio conter suas emoções

Seu aprendizado, mais do que simples rito de passagem, se dá em suas relações com o burquinense Aiyva (Koudous Seihon), com quem aprende a conter suas emoções e refletir sobre o que fazer. Principalmente se concentrar no que rende bom dinheiro e é menos ariscado. Isto exige de Carpignano acurada sensibilidade para moldar personagens e atores, sem dotá-los de demasiada testosterona e explosiva agressividade. Notadamente na bem construída sequência em que Pio é apresentado por Aiyva ao ganense Goia e se compromete a lhe entregar o equipamento acertado. Há tensão e suspense numa sequência de grande risco.

A câmera de Carpignano, através da fotografia de Tim Curtin, é mais expectadora, apenas observa, nunca se mostra, mesmo em suaves movimentos. É assim na sequência em que Pio percebe pela primeira vez o que é ser acolhido e festejado como amigo por um grupo de ganeses. Sorri e se mostra feliz. A câmera está nele centrada, imóvel, a registrar o momento único de sua existência. Há verdadeira afetividade entre os deserdados cigano e africanos numa tenda dos forçados imigrantes. No centro de tudo está Aiyva que lhe transmite segurança e flexibilidade.

Além disso, o Aiyva de Carpignano funciona como consciência dos deserdados da Ciambra. Não perdeu seu elo com Burquina Fasso. Suas raízes e paixões continuam lá. Seu olhar é de um ser acuado, consciente dos riscos e punições que pairam sobre ele e, por que não, sua existência de forçado imigrante africano. Sua emblemática frase: “somos nós contra eles”, reflete em profundidade a opressão vivida pelos deserdados ciganos e africanos. A permanência de ambos em Ciambra está condicionada a suas ações, pois são apenas tolerados, não integrados como cidadãos.

Avô diz que antes os ciganos eram livres

Não só os africanos têm a percepção de que são deserdados, na dialética visão de Carpignano. Também Emiliano Amato, avô de Pio, numa antevisão do que estava em curso na família, relembra em viva configuração que aquela não era a vida a que se acostumara. “Antes éramos livres, não dependíamos de ninguém”. Se fixarem em Ciambra, onde não podiam viver do que os sustentara ao longo dos séculos: criar cavalos e vendê-los a bom preço lhes rendia mais e mantinham sua cultura.

Não só ele e Aiyva têm estas percepções das perdas de identidade e das ameaças nem sempre veladas, confirmadas em duas sequências em contínuo, tendo Pio como centro da discórdia. Sua ânsia em se mostrar para os irmãos e a avó leva-o ao conflito com os italianos, não menos envolvidos em questões cinzentas do que ciganos e africanos. O que lhe acontece coloca-o perante toda a família, o que, afinal, marca seu forçado rito de passagem para o da consciência do que é ser um deserdado cigano.

De qualquer forma, Carpignano se mostra solidário, ao não penalizar o afoito Pio ou pôr sob suspeita os imigrantes forçados africanos, árabes e asiáticos. Eles estão apenas começando a absorver as nuances e as complexidades de um país cuja composição étnica milenar inclui os que ali nasceram em condições melhores do que as suas. Uma visão construída por Carpignano ao visitar Ciambra meses antes e, a partir daí, transformar toda a família cigana Amato em atores, com destaque para o jovem Pio, como o aprendiz de furtivas ações. Valeu-lhe a indicação de filme italiano para concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro 2018. O que foi pouco.

“Ciganos da Ciambra” (A Ciambra). Drama. 2018. Alemanha, EUA, França, Itália, Brasil. 118 minutos. Trilha sonora: Dan Romer. Montagem: Affonso Gonçalves. Fotografia: Tim Curtin. Roteiro/direção: Jonas Carpignano. Elenco: Pio Amato, Koudous Seihon, Damiano Amato, Iolanda Amato, Rocco Amato, Cosimo Amato.

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