Sem máscaras, EUA apostam no caos e ilegalmente rasgam acordo com Irã

No último dia 08, o governo dos Estados Unidos anunciou que, unilateralmente, retomará sanções contra o Irã, rompendo um acordo assinado entre os dois países e referendado amplamente. Para Trump, tratados são apenas folhas de papel.

Ilustração: Tainan Rocha

O que Washington imagina ganhar com uma decisão que expõe tanto a sua desconsideração pelo direito internacional como pela opinião unânime de todos os outros estados participantes das negociações que culminaram no acordo?

O tratado, denominado Plano de Ação Conjunta Abrangente (JCPOA, na sigla em inglês), foi firmado em julho de 2015. Sua base é a aceitação pelo Irã de certas condições no desenvolvimento de seu programa nuclear, visando a garantir aos demais o seu caráter estritamente pacífico. Em troca, os EUA abandonariam a imposição de sanções que há anos prejudicavam a economia iraniana.

A fiscalização das instalações nucleares do Irã ficou a cargo dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Foi também formada uma comissão encarregada de dirimir conflitos, composta também pelos outros membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Rússia, China, França e Inglaterra), além de Alemanha e União Europeia. Ou seja, tratou-se de um entendimento amplo e multilateral: um raro compromisso entre partes com interesses tão distintos.

De imediato, a decisão de Trump implica na retomada de sanções que haviam sido suspensas pelo governo Obama justamente em decorrência do acordo. A primeira rodada atinge o cerne da economia do Irã ao restringir a exportação de petróleo e derivados por aquele país, além de atacar quaisquer pessoas que mantenham negócios com o Banco Central e outras instituições financeiras do iranianas.

Ou seja, os EUA jogaram para o ar anos de intensas negociações e decidiram proibir, unilateralmente, os europeus, chineses e indianos, por exemplo, de comprar livremente o petróleo iraniano (cada vez mais fundamental para suas economias, diga-se). Claro, ninguém é obrigado a obedecer, mas os prejuízos que podem advir das represálias assustam. De todo modo, os demais estados que assinam juntos o acordo declararam sua intenção de mantê-lo e de proteger suas empresas que atuam ou tem negócios com o Irã.

Da mesma forma, Hasan Rouhani, presidente iraniano, também afirmou a disposição para manter em prática os termos do tratado. No momento, ele não tem saída melhor. Em 2015, muitas vozes importantes em Teerã alertavam para a ingenuidade de se confiar nos Estados Unidos… Houani e seu ministro de relações exteriores, Javad Zarif, gastaram grande parte de seu capital político interno para convencer o conjunto das forças políticas do país a aceitar o acordo que Washington agora rasga sem qualquer pudor.

A ilegalidade da decisão dos EUA é evidente. O Irã vinha cumprindo integralmente o acordo, como atestam os relatórios trimestrais AIEA e, inclusive, os serviços norte-americanos de inteligência, como informou a imprensa especializada dos próprios Estados Unidos. Até o “falcão” Mike Pompeo, Secretário de Estado e ex-chefe da CIA, declarou, em sua sabatina com os senadores, que não existe qualquer indício de violação do tratado por parte do Irã. Contra todas as evidências, Trump afirmou que Teerã continua trabalhando na busca por armas nucleares, repetindo um roteiro que já assistimos antes da invasão do Iraque. Bem ao gosto da moda das “convicções” que dispensam as provas, ele disse que os iranianos não violaram as regras, mas sim o “espírito” do acordo.

Ora, ainda que o delineamento do “espírito” dos diplomas legais fosse um marco seguro para sua interpretação, não cabe a um dos litigantes a primazia dessa definição. Em respeito ao bom direito, foi estabelecido um caminho específico para solucionar controvérsias em torno desse tratado: a Resolução 2231 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Trump o desrespeitou também! Se o problema fosse de fato alguma atitude suspeita do Irã (quer fosse concreta, quer fosse “espiritual”), o caminho legal seria seguir o processo determinado por essa Resolução. Contudo, mais uma vez, os EUA declaram sem meias palavras que as decisões estabelecidas na ONU e, inclusive, referendadas por eles, não são para ser levadas a sério.

Qual o objetivo desse comportamento? Os altos funcionários de Washington alegam que a decisão do último dia 08 demonstra força e que, graças a isso, deixará o Irã encurralado ao ponto de aceitar outros termos, mais favoráveis aos EUA e seus aliados no Oriente Médio (nominalmente, Arábia Saudita e Israel). Alegam também que essa teria sido a estratégia conduzida com sucesso na Coréia do Norte: tensionar ao máximo, para forçar uma negociação em melhores termos.

Há, de saída, duas mentiras aqui. Primeiro, os EUA não parecem buscar um novo acordo com o Irã, mas sim praticamente eliminar a capacidade de Teerã se defender (algo que, normalmente, não se obtém com diplomacia). Segundo, não foi a estratégia de Washington que levou à distensão na península coreana, mas sim a de Pyongiang, que não se intimidou com as ameaças de Trump e o fez mudar radicalmente de posição.

O objetivo não declarado pela Casa Branca passa por uma estratégia agressiva para o Oriente Médio e também por uma concepção de relações internacionais cujo cerne é o uso da força sem qualquer máscara que busque lhe dar o mínimo de legitimidade.

No teatro local, o interesse norte-americano é o mesmo desde que a Revolução de 1979 derrubou o regime pró-EUA de Reza Pahlevi: derrubar a república islâmica. Para isso, recorre-se à guerra ou a um estrangulamento econômico por meio de sanções que desestabilizem e enfraqueçam os governos de Teerã o máximo possível.

A abordagem pragmática do “smart power” de Obama e Hilary Clinton optou por barrar o desenvolvimento de armas nucleares pelo Irã. Por isso, assinou um acordo e conseguiu envovler até mesmo a Rússia e a China, seus rivais geopolíticos, naquele compromisso. Contudo, os falcões de Trump não se satisfizeram e agora impõe sua preferência por buscar deixar o Irã na condição de estado pária, impedindo-o de estabelecer relações normais com o sistema internacional. Um isolamento que prepara o caminho para provocações e, no limite, para uma guerra tantas vezes anunciada.

Há anos, essa é alinha defendida por John Bolton, agora guindado ao posto de conselheiro de segurança nacional do presidente dos EUA. Bolton: um homem que gosta muito de guerras, mas que, quando teve a oportunidade de vivenciar uma pessoalmente, no Vietnã, alegou razões de ordem pessoal para não se alistar.

Nesse contexto, a paz com a Coreia do Norte é apenas uma concessão à realidade, imposta por um adversário mais ousado e inteligente. E, mesmo assim, quem apostaria nessa paz e no eventual acordo que nascerá dela após Washington rasgar um tratado de segurança regional que foi diligentemente cumprido pela outra parte?

Um outro fator importante a se considerar no contexto da ruptura com o acordo é a realização das eleições nacionais no Iraque, nesse último final de semana. A influencia sobre Bagdá é fundamental para os planos de Washington. Até onde se sabe, as urnas não darão a nenhum grupo a maioria necessária para indicar o primeiro-ministro e formar um governo. Mesmo com uma campanha anunciando sua vitória sobre o Estado Islâmico (que já chegou a controlar 1/3 do Iraque), é improvável que Haidar al-Abadi, atual primeiro-ministro, consiga a maioria para manter-se no cargo. Os iraquianos terão pela frernte meses de negociações entre suas lideranças até chegarem a um governo. Nesse sentido, atacar o Irã visa também a diminuir sua influência sobre o país vizinho e abir mais espaço para a ação dos pro-cônsules norte-americanos.

Agora, voltando aos objetivos não declarados, mas implícitos, Washington dá mais um passo no seu esforço para desorganizar o sistema multilateral que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. Esse é um caminho que vem sendo percorrido desde o fim da URSS, quando boa parte do establishment dos EUA passa a considerar que mesmo essa multilateralismo imperfeito é uma barreira à extensão de seu poder.

O “quem não está conosco está contra nós” de Bush, a invasão do Iraque, a aposta em acordos bilaterais de comércio a despeito da OMC e a ruptura do acordo com o Irã (somente para destacar alguns exemplos) são a manifestação de um imperialismo cada vez mais escancarado e agressivo, que não se incomoda sequer com os apelos de seus aliados na OTAN. Embora neguem, os EUA buscam cravar os dentes no Irã, quer seja diretamente, quer seja por meio de seus procuradores no Oriente Médio. Para isso, precisam caminhar tanto pela ilegalidade como por um arriscado cálculo de forças mais orientado pela arrogância que pela frieza estratégica.

Sua aposta na desconstrução das instituicões multilaterais e violação da legalidade internacional evidenciam uma política imperial cada vez menos preocupada em mostrar ao mundo sua verdadeira face.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor