Nos céus de Lima, golpismo sobrevoa a integração latino-americana

As aves de rapina que sobrevoam a integração latino-americana surgiram nos céus em dois eventos de abril. O primeiro deles foi a Cúpula da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em Lima, em meados do mês. 

Ilustração: Tainan Rocha

O segundo foi o anúncio, dias depois, da suspensão das atividades de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Colômbia na União de Nações Sul-americanas (UNASUL). Em pouco tempo, os governos conservadores do continente demonstraram sua fidelidade aos interesses alheios aos nossos.

A Cúpula de Lima provou, mais uma vez, que a OEA não passa de uma correia de transmissão da política de Washington para a América Latina. Mesmo sem que Washington se interessasse muito pela reunião (Trump tinha mais o que fazer), os governos da região mostraram todo seu servilismo e dependência. Por sua vez, o esvaziamento da Unasul atende a uma demanda já antiga dos EUA: desarticular o organismo que permite vislumbrar um caminho soberano e autônomo para os países da América Latina.

A OEA foi criada em 1948, mas sua história é mais antiga. O embrião dessa organização foi a Oficina Comercial das Repúblicas Americanas, vinculada a Washington e constituída para dar seguimento às tratativas do que seria conhecido como a primeira conferência “pan-americana”, realizada nos EUA no final do século XIX. Já ali, há mais de cem anos, os norte-americanos falavam em uma união monetária das Américas (um plural que, por si só, é um reconhecimento tácito das diferenças que nos separam do norte).

Naquele contexto, que se seguiu à pacificação do país após a sua Guerra de Secessão, a economia norte-americana expandia-se e precisava consolidar mercados. Como sempre, o nome dado a isso foi “defesa da liberdade”. Utilizaram a diplomacia com o mesmo propósito com que, diversas vezes no século XX, utilizaram as armas contra latino-americanos.

Desse modo, a OEA foi a organização dos estados americanos sob a hegemonia e os interesses dos Estados Unidos. Ironicamente (e uma ironia de muito mal gosto) Simón Bolívar foi apresentado como um dos precursores da OEA. Logo Bolívar, que muitos anos antes já afirmara que “os Estados Unidos parecem destinados pela providência para infestar a América de miséria em nome da liberdade”. “A” América, no singular dessa vez.

Não surpreende, portanto, que a Cúpula realizada neste ano em Lima tenha sido um palco para o cinismo. Maurício Macri condenou a corrupção (!) e Michel Temer, as soluções “alternativas à democracia” (!!), enquanto o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, aquele mesmo que abraçou Trump logo após as exortações a favor de um muro que contivesse os “malfeitores” mexicanos, dizia apoiar totalmente a exclusão da Venezuela daquela cúpula (!!!). A tônica de todo o encontro foi essa: condenação à Venezuela e alinhamento aos Estados Unidos.

Fica patente, mais uma vez, a incapacidade das elites conservadores locais em formular um projeto próprio, qualquer que seja ele. O limite do seu horizonte estratégico é estar a reboque dos formuladores de Washington. Quando a ênfase dos EUA estava nos mega acordos de comércio (construídos com normativas que colocavam em xeque o multilateralismo), bradava-se por aqui contra o Mercosul e suas “restrições” ao comércio internacional. Depois, quando Trump venceu as eleições e abandonou aquelas negociações, as elites locais se limitaram a aguardar a nova orientação. Hoje, quando o presidente dos EUA sequer comparece a uma reunião desse nível, pode contar com os governos locais atuando para adequar-se o mais rapidamente possível à sua política. Ao fim do dia, é a bandeira dos Estados Unidos que está cravada na testa das forças conservadoras e golpistas do continente.

Seguindo o cronograma anunciado em Lima, veio o golpe contra a entidade que mais incomoda Washington: a Unasul, primeira organização internacional a reunir todos os estados da América do Sul. A pretexto da falta de definição quanto à nomeação de um novo secretário-geral para o organismo, os seis países suspenderam suas atividades no bloco. Claro, seu comunicado não menciona que o novo secretário-geral ainda não existe devido à inação política do governo de Macri, que até o ano passado exercia a presidência pro-tempore da Unasul.

Criada em 2008, a Unasul já sofreu muitas críticas nos círculos especializados em integração. Por um lado, à direita, se enfatiza uma certa fraqueza para alcançar os objetivos econômicos aos quais se propôs. Trata-se de uma visão que compreende “integração” basicamente como comércio intra-regional. Nesse sentido, uma organização que pretendia fazer convergir o Mercosul e a Comunidade Andina – dois blocos já existentes na América do Sul – seria utópica. A articulação pelos EUA da chamada “Aliança do Pacífico”, uma forma de enfraquecer tanto a Unasul como o Mercosul, viria, dizem os críticos, para consolidar esse argumento.

Por outro lado, mais à esquerda, afirma-se que os tópicos da nova teoria da integração regional, que a Unasul expressa nos objetivos de seu Tratado Constitutivo, não possuem os instrumentos adequados para serem concretizados. Em outras palavras, a ousadia nas metas não foi acompanhada pela ousadia nas instituições. A integração política, estratégica, militar, social, cultural e cidadã proposta emperra na falta de vontade dos estados em conceder poderes suficientes à organização.

A primeira visão peca por ser estreita na forma como concebe a integração (muito “fenícia”, como já disse Pepe Mujica). Por sua vez, a segunda falha por não considerar os poderosos constrangimentos no caminho da unidade que queremos e necessitamos. Afinal, a Unasul avançou até onde foi politicamente possível e foi contida pela onda golpista e conservadora que agora assume os governos da região. Claro que um caráter supranacional teria dado à entidade poderes para manter-se estável, independentemente das mudanças de governo. Contudo, como teria sido possível existir uma Unasul com esse nível de compromisso na mesma mesa onde se sentavam governos tão díspares como os de Álvaro Uribe, então presidente colombiano, e de Hugo Chávez?

Um parênteses: em meados do século XIX, em uma outra reunião de estados ocorrida em Lima, escreveu-se uma página mais honrosa que essa da Cúpula realizada no mês passado. Entre 1864 e 1865 realizou-se na capital peruana um congresso continental que culminou na assinatura de tratados de defesa mútua e conservação da paz na América. Foi uma década difícil: Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, invasão francesa no México e intervenção espanhola na República Dominicana e no Peru. Mesmo nessa conjuntura complexa, as vozes em prol da integração se fizeram ouvir.

O enviado colombiano àquele Congresso de Lima, Justo Arosemena, escreveu um livro no qual afirma a vitalidade das ideias de Bolívar e da primeira iniciativa pela integração, ocorrida sob o patrocínio político do Libertador (“Estudio sobre la idea de una liga americana”, 1864). Referindo-se aos esquecidos tratados de união assinados em 1826, logo após a conclusão da guerra de independência contra o Império Espanhol, Arosemena escreveu: “se insistimos em detalhes sobre um tratado que não foi exequível e ao qual ninguém presta hoje a menor atenção, é precisamente porque esse desdém oferece matéria para seríssimas reflexões”.

A disposição para atacar a Unasul não é por si só reveladora do peso dessa entidade e do projeto que ela traz consigo? Fosse tão inexpressiva, a Unasul seria tão combatida? Com todas as limitações próprias ao processo histórico de construção da integração latino-americana, essa organização é um marco e deve ser defendida por qualquer um que deseje um continente soberano e livre das intervenções de interesses alheios aos dos seus povos.

A Cúpula da OEA em Lima foi apresentada como o “fim da era bolivariana”. Há duas lições nessa afirmação. A primeira é um engano: ao contrário do que diz, o bolivarianismo existe desde as independências e continuará existindo em defesa da realização do projeto de união e liberdade, ainda que sofra derrotas circunstanciais. A segunda é uma verdade anunciada a contrapelo: a Cúpula de Lima, é inegável, foi sim contrária a Bolívar e ao que ele representa enquanto projeto para a América Latina.

Entre nós, latino-americanos, não ser bolivariano é ser sócio das aves de rapina que rondam o continente. Cada vez mais, aliás.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor