“Arábia”

Vítima das estruturas do capital

Em filme que discute os percalços do peão de trecho, os cineastas Affonso Uchôa e João Dumans repõem o cinema na reflexão dos impasses do Brasil

É como se os fios fossem sendo puxados para desvendar o que há sob os novelos e a câmera registrasse cada volta da vida. Camadas e camadas surgiriam expondo a tragédia anunciada do jovem peão de trecho Cristiano (Aristides Souza). Neste “Arábia”, dos cineastas Affonso Uchôa e João Dumans, ela chega trançada ora numa narrativa expositiva, noutras em flashes-backs a demarcar os vais-e-vens de sua atribulada existência nas fazendas e nas indústrias mineiras. Emerge daí o perfil sem retoques não só dele como o de milhões de proletários cujas vidas oscilam entre a híper-exploração de sua força de trabalho e a miséria em todo o país.

Não diferente de “A Vizinhança do Tigre” (2014), onde tata da vida sem perspectivas de cinco jovens da periferia de Contagem (MG), também aqui a dupla Uchôa/Dumans está mais interessada nos deserdados esmagados pelo mecanismo político-econômico-social da burguesia nacional, configurada nos empresários rurais e urbanos para os quais Cristiano e seus companheiros, como o afrodescendente Cascão (Wederson Neguinho) trabalham em estafantes jornadas. Ele é o peão de trecho, aquele que, tendo profissão ou não, ganha seu sustento de cidade em cidade, de estado em estado, sem perspectivas de ficar ou ter família.

A dupla de cineastas isola-o dos demais personagens para mostrar o quanto está deslocado nesta anti-epópeia, em que é o guerreiro cujas espadas são seus braços e suas mãos. Sempre a trafegar por rodovias de intenso tráfego a pé, numa metáfora de quem vive à margem da sociedade que o exclui, mas, contraditoriamente, precisa dele para maximizar seus lucros. Não sem razão, é filmado à distância, em grande plano, sempre mergulhado nas sombras pela fotografia de Leonardo Feliciano. Nunca sob luz intensa, não há sol em sua jornada, nem quem com ele a compartilhe.

Ruralista persegue líderes sindicais

Seu universo é do solitário sem raízes, sem lugar onde se fixar, depende mais do trabalho que encontrar, seja aonde for. Mergulha então numa inquietação interior, devido ao meio hostil. Revela seus medos e os muros a escalar e ganha coragem para se demitir da plantação, colheita e encaixotamento de mexerica por receber muito pouco e a jornada ser longa e estafante. E ainda ouve ameaças do empresário rural que planta e vende caminhões e caminhões desta fruta. “Pode ir embora, não assinei sua carteira, não tem nada a reclamar”. E ele assim se despede do campo.

Não sem razão, a dupla Uchôa/Dumans introduz, mesmo sub-repticiamente, o conflito entre os trabalhadores do campo, organizados em sindicato, e os empresários rurais. O próprio tio de Cristiano, líder sindical, motivo de sua vinda para a região de Ouro Preto, lhe relatou as dificuldades da entidade para defender os direitos da categoria. Seus dirigentes eram não só ameaçados como assassinados, quando não desapareciam simplesmente, caso de seu tio. Inicia-se, então, sua mutação em peão de trecho numa pedreira onde conhece Cascão, de quem se torna amigo. Daí para a frente envereda para as rodovias e as cidades industriais mineiras.

Com esta eficiente estruturação narrativa, a dupla Uchôa/Dumans percorre as entranhas da teia industrial do Vale do Aço, distante de Ouro Preto. Não o faz, contudo, pela via turística, mostrando as cidades de João Monlevade, Ipatinga e Governador Valadares e os altos-fornos das siderúrgicas Belgo-Mineira e Usiminas, respectivamente, prefere transformá-los em referências, não como cenário. Isto lhe permite fazer Cristiano transitar pelas rodovias e núcleos urbanos e se unir ao caminhoneiro que leva cargas a Ouro Preto e voltar a se unir a Cascão e conhecer Ana (Renata Cabral), que mudará suas perspectivas de vida.

Marx já refletia sobre a negação de direitos

Inexiste, portanto, linearidade, tudo se dá através do fluxo de memória, com vozes se sobrepondo e diversos fios narrativos fixando as situações. As vozes permitem ao espectador se situar, porquanto a narração se dá em off, através do jovem André (Murilo Caliari), ao ler o caderno com o diário de Cristiano. É onde também a montagem de Luiz Pretti e Rodrigo Lima reforça a narrativa e o denso e misterioso clima, ao revelar seu estado psicológico e registar sua angústia, temores e sonhos. Desta forma, o espectador capta, inclusive, o que ele e Ana pensavam e esperavam do relacionamento deles sem qualquer lacuna dramática.

Não é estranho ver o quanto o nível de consciência dele cresceu no contato com as estruturas capitalistas. Não é mais o assustado e humilde jovem que foi explorado e ameaçado pelo empresário rural. Seu amadurecimento vem de seu trabalho na siderúrgica, no contato com as chamas do alto-forno e o pó dele emanado. Isto lhe mostra o quanto são danosas à sua saúde. Perde assim todo o encanto que porventura lhe causara no início. Dá –se conta de que não lhe dá prazer e nem se sente integrado à empresa e seu trabalho não o satisfaz, tampouco o integra à siderúrgica. O que o faz desabafar: “a vida de operário é uma vida à parte”.

Não sem razão, Karl Marx (1818/1883) diz no Grundrisse (1857/1858. Boitempo Editorial, 2011, página 225 (…) que na troca com o capital o trabalhador está em uma relação de circulação simples, portanto não obtém riqueza, mas somente meios de subsistência, valores de uso para o consumo imediato (…)”. Ou seja, não participa dos lucros e muito menos tem garantia de emprego vitalício e participação nos lucros da empresa. Em sua simplicidade, Cristiano adquiriu consciência não só de sua exploração, como também que as jornadas do trabalho o faziam absorver o pó de minério e, além disso, lhe causava danos nos pulmões.

Cristiano é “cidadão” Não/Nem

Cristiano, no entanto, acabou se constituindo num “cidadão” Não/Nem. Não, porque seus direitos de cidadão são negados pelo poder burguês. Sobrevive com baixos salários, sem casa própria e assistência à saúde digna. Seus filhos estudam em precárias escolas públicas, sucateadas para serem privatizadas. Nem, porque vive em bairros da periferia, sem esgoto, água potável, meio de transporte de qualidade, mora em barraco caindo em córregos pútridos, invadidos pelas enchentes. E nem assim lhe chegam os benefícios vistos nos bairros burgueses e de classe média. Tudo porque o poder burguês não inclui a periferia na zona urbana da cidade. É, enfim, um Não/Nem porque não tem isso nem aquilo.

Ao provocar estas elucubrações, a dupla Uchôa/Dumans mostra, através deste “Arábia", estar consciente das fraturas e impasses do Brasil atual, entregue aos liquidacionistas. Sua bem construída narrativa, às vezes se valendo de entrechos para sustentá-la, retoma os temas terceiro-mundistas do Cinema Novo, com o Glauber Rocha(1938/1981), de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969); o Leon Hirszman (1937/1987), de “Eles Não usam Black-Tie"(1981); e o Nelson Pereira dos Santos (1928/2018), de “Vidas Secas” (1963). Cinema afinal serve, para além da normal diversão, para refletir sobre os descaminhos do país.

Arábia. Drama. Brasil. 2017. 97 minutos. Trilha Sonora: Francisco César. Montagem: Luiz Pretti/Rodrigo Lima. Fotografia: Leonardo Feliciano. Roteiro/direção: Affonso Uchôa/João Dumans. Elenco: Aristides Souza. Murilo Caliari, Gláucia Vandeveld, Wederson Neguinho. Recebeu os prêmios do Festival de Brasília 2017 : Melhor filme (Júri Oficial), Melhor filme (Júri da Abracine), Melhor ator(Aristides Souza), Melhor Montagem e Melhor Trilha sonora.

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