“MUDBOUND – Lágrimas sobre o Mississipi”

Drama da diretora estadunidense Dee Rees discute racismo, luta de classe no campo e a resistência da mulher à submissão nos EUA dos anos 30/40.

Num contínuo em que expõe a exploração e os conflitos de classe no campo entre trabalhadores afros e empresários rurais nos EUA dos anos 30/40, a diretora estadunidense Dee Rees (07/02/1977) centra a ação deste MUDBOUND – Lágrimas sobre o Mississipi nos conflitos gerados pelo racismo na pequena Greenville, sob o controle da organização racista Ku-Klux-Klan. E, além disso, trata da influência dos europeus no comportamento dos soldados negros oriundos do campo que participaram da II Guerra Mundial (1939/1945) e a reação deles à discriminação racial.

Estas dualidades dramático-narrativas redimensionam, desde o início, o ódio dos escravagistas brancos sulistas dos Estados Confederados do Sul que lideraram a Guerra da Secessão (1861/1865). Tentativa fracassada de se separar do Norte urbano-industrializado, que redundou na abolição da escravatura nos EUA (1863). E ainda sonhada pelos adeptos da Ku-Klux-Klan, criada em 1865 pelo General Nathan Bedford Forrest. Desde então segmentos da classe média urbana e rural dos estados do Sul, e não só eles, aderiram à tese racista da suposta “supremacia branca”.

O microcosmo ficcional onde se desenvolve a ação, estruturada por Rees e seu corroteirista Virgil Willians, a partir do romance “Mudbound (2008), ou Lama Proibida, em tradução livre, da escritora caucasiana estadunidense Hillary Jordan (1963), é composto pela cidade de Greenville e a fazenda de Henry McCallan (Jason Clarke). Nelas o clima opressivo e vigilante persiste por meio do chefe da Ku-Klux-Klan, Ottes Stokes (Jason Kirkpatrick) e do pai de Henry, Pappy McCallan (Jonathan Banks) com o premeditado alheamento da dona da loja, Rose Tricklebank(Kerry Cahill), e dos agitados e impunes racistas das vilas e fazendas vizinhas.

Reza de Hap assemelha-se a sentença de maldição

Esta precisa matização se estende ao segundo núcleo do microcosmo ficcional, formado pela família de Ronsel, composta pelo pai Hap (Rob Morgan), sua mãe Florence (Mary J. Blige) e suas duas irmãs e um irmão. Arrendatários de área para cultivar algodão, eles vivem às voltas com a estação chuvosa e as constantes exigências de Henry para atender às suas urgências na casa-grande. Assim, as dificuldades de Hap para sustentar os filhos, mesmo com a ajuda deles e Florence. leva-o a sonhar com o arrendamento de área rural em outro estado, mas as barreiras são muitas.

Como pastor evangélico na improvisada igreja de madeira, ele reúne as famílias afros das proximidades para rezar e cantar. É o único instante em que ambos assumem o controle de suas ações, expondo e atenuando seu sofrimento e exclusão. Numa forma de se manterem juntos e por uns por momentos ficarem distantes do racismo e da exploração. Contraditoriamente é a ele que Henry recorre no momento em que precisa enterrar Pappy, vítima de seu próprio rancor. E Hap tece a reza de forma mecânica e enviesada, como amaldiçoasse o defunto para a eternidade.

Não bastasse, a dupla Rees/Willians amplia sua construção dramática individualizando a linha narrativa central, para tratar do particular. O faz através de Laura McCallan (Carey Mulligan), a jovem pedagoga e pianista e intelectual casada com Henry, que em meio à turras de Pappy com o filho Jamie, não deixa de se impor a todos eles. É emblemática a sequência em que se insurge contra Henry para manter seu canto e o único prazer que lhe resta: a de tocar piano e cuidar das duas filhas. Ela e Florence são os pontos de racionalidade no podre universo racista do sul dos EUA.

Rees resgata a participação de soldados negros na II Guerra

Enquanto Laura é explosiva e impositiva, Florence é mais reflexiva, dada a ouvir Hap, mas também de guiar-se pelo que acha menos prejudicial à sua família. É assim, quando é chamada à noite por Henry, sempre ele, para socorrer as duas filhas acometidas de coqueluche, pois o médico ficava a léguas da fazenda. E, a partir daí, ela e Laura se tornam amigas e ganha seu dinheiro como doméstica na casa da senhoria. Também é ela que trata de Hap, após este cair da escada quando consertava o telhado da fazenda dos McAllen. É, além disso, parteira e cuida dos filhos.

Rees, afrodescendente, faz precisas contraposições em sua narrativa. Como Spike Lee (20/03/1957), em “O Milagre de Santa Ana" (2009), que mostrou a participação dos soldados e oficiais negros nos combates contra os alemães na Itália, ela põe Ronsel e Jamie em combate nos fronts europeus durante a II Guerra Mundial (1939/1945). O primeiro como sargento na 761ª Divisão de Tanques dos Panteras Negras, o segundo como capitão-piloto nos bombardeiros em combates aéreos. Mais do que aprender a eliminar o inimigo, descobriram a necessidade de ter boas relações sociais e o respeito ao outro independente da cor.

Isto, contudo, não livrará Ronsel do racismo e da opressão. Seu primeiro teste ao voltar aos EUA é no ônibus que toma para chegar a Greenville e ser obrigado a sentar no banco dos fundos atrás da placa Colored (negro). E, pior, ao entrar na loja de Tricklebank pela frente, tem de ouvir as ameaças de Stokes e de Pappy, para sair pela porta dos fundos. E ele responde que foi lutar contra os alemães na Europa e quando voltou tudo continuava no mesmo. Rees, seguindo Jordan, se vale de ferinos diálogos para mostrar o quanto ele está consciente de ser cidadão livre.

Ronsel vê na Europa a saída para seu impasse

Com câmera de documentarista, centrada nos personagens e em suas reações, Rees foge aos closes, usa cortes rápidos, cenários tomados pelas sombras, entrecortadas pela luz de lampiões. É como se os flagrasse em seus instantes de intimidades em plano aproximado, a exemplo de Laura e Jamie juntos, ou quando ela lamenta o afastamento de Henry e se vê sozinha na cama. E se afasta um pouco na sequência em que Pappy esbofeteia o filho mais novo à frente dela. Nem se aproxima em demasia de Ronsel ao mostrá-lo trocar ideias com o amigo Jamie e ambos se mostrarem frustrados em Greenville e sonharem em tomar novos rumos.

Era mais inquietante e estimulador para Ronsel, que conseguira se relacionar com europeus e europeias de igual para igual sem qualquer preconceito e ser tratado como “libertador da Europa das garras de Hitler”. Tinha vivido a experiência da igualdade, fraternidade e liberdade. E havia algo mais do qual não queria nem podia se distanciar. As contraposições entre as relações raciais e de trabalho nos EUA distavam milhares de quilômetros da Alemanha, com a qual sonhava.

Como ocorre com a dramaturgia cinematográfica moderna, desde as tramas paralelas de Robert Altman (1925/2006), em Nashville (1975), a dupla Rees/Jordan lança sobre o espectador subtramas que reforçam o tema central. Principalmente a do desespero da camponesa Vera Atwood (Lucy Faust) que, além de já ter duas filhas pequenas, está grávida do terceiro filho e o companheiro Carl Atwood (Dylan Arnold) foi demitido por Henry. Caucasiana, desesperada, sem obter a ajuda de Laura, ela se vale de recurso extremo, equiparando seu impasse ao de Hap e sua família, pois ambos são vítimas do mesmo patrão, que a destituiu de seu sustento.

Rees vê exploração igual de negros e brancos

Seu horror se equipara ao de Ronsel ao ser cercado pelos racistas da Ku-Klux-Klan e, mesmo defendido por Jamie, não o deixam sem marcas cruéis e definitivas, das quais não poderá se livrar. Mesmo que vá ao

encontro de seus sonhos. Com isto, Rees mostra sua preocupação com os trabalhadores, não só com a discriminação, perseguição e execução motivada pelo racismo, mas também critica a exploração da mão de obra e o descaso dos capitalistas, seja lá qual for o seu ramo, com as carências e aspirações e direitos de todos eles viver, seja lá qual for a sua cor.

O espectador assiste ao desenrolar destes horrores, a partir do olhar da diretora de fotografia Rachel Morrison, única mulher candidata ao Oscar 2018, que iluminou cenas e sequências unicamente com lampiões, às vezes utilizando filtros, para o espectador ter a sensação de que vivia o clima opressivo e desesperador construído por Rees. Vê-se muitas vezes recortes, sombras, móveis mergulhados na escuridão, personagens que se movem como espectros. É angustiante ver Hap se mover e cair com a perna fraturada, a carne exposta, sem que ela não envolva o espectador reflexiva e emocionalmente. Sem dúvida, o melhor filme dos EUA em anos.

MudBound – Lágrimas sobre o Mississipi. Drama. EUA. 2017.134 minutos. Música: Tamar-Kali. Edição: Mako Ramitsuna. Fotografia: Rachel Morrison. Roteiro: Virgil Willians/Dee Rees, baseado na novela de Hillary Jordan. Direção: Dee Rees. Elenco: Carey Mulligan, Garret Hedlund, Jason Clarke, Jason Mitchell, Jonathan Banks, Mary J. Blige, Rob Morgan.

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