A faca amolada do STF: Uma quase-coluna (parte 2)

Retomo aqui o desafio lançado na primeira parte desta quase-coluna: entender os argumentos em torno da preliminar de não conhecimento do habeas corpus preventivo 152.752/PR, impetrado por Luiz Inácio Lula da Silva, e ver a dinâmica de algumas teses centrais no debate ocorrido no quase-julgamento do STF.

Em linhas gerais, a hipótese central que impediria a apreciação do habeas corpus pelo STF seria a de que o remédio constitucional colocado em votação, por ser derivado de decisão colegiada da 5ª Turma do STJ, substituiria indevidamente a utilização do Recurso Ordinário previsto no art. 102, II, “a”, da Constituição da República. Estaríamos diante do que no juridiquês chama-se “habeas corpus substitutivo de Recurso Ordinário Constitucional”, o que impediria, pela jurisprudência da primeira turma do STF, o conhecimento do remédio constitucional.

Além do ministro relator, concorda com essa hipótese o ministro Luis Roberto Barroso, que, além da tese central, afirma ser o caso de incidência da súmula 691 do STF, que diz expressamente, como trouxemos na parte 1 desta quase-coluna: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

Quanto a essa linha argumentativa, o aditamento do pedido conhecido pelo Relator efetuou a substituição da liminar monocrática pelo acórdão de mérito denegatório da 5ª Turma do STJ, o que afasta, no entender da ministra Rosa Weber, a hipótese de enquadramento do caso na determinação da Súmula 691 do STF. Rosa Weber também faz parte da primeira turma do STF.

Outra hipótese indicada na primeira parte desta quase-coluna, como tal a necessidade de impetrar outro habeas corpus com nova fundamentação com base não mais na liminar, mas nos termos da decisão de mérito da 5ª. Turma do STJ, não há como adotar essa solução. Em face da substituição do ato coator como o acórdão da 5ª Turma do STJ, e não a decisão monocrática do ministro Humberto Martins, e levando-se em consideração que tal modificação foi anteriormente enfrentada pelo ministro relator, não conhecer do habeas corpus seria, pelo voto da ministra Rosa Weber, “prestigiar a forma pela forma”. Em sua linha de raciocínio, a forma, “como garantia de liberdade, não pode fundamentar decisão contrária ao jurisdicionado”.

O plenário do STF desenvolve um entendimento distinto daquele construído em sua primeira turma, que entende pela necessidade de um novo habeas corpus com fundamentação distinta. Há julgados do plenário em habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ, que pelo entendimento da primeira turma seriam substitutivos do Recurso Ordinário e, ainda pela primeira turma, não seriam conhecidos pela necessidade de nova fundamentação por conta da substituição da decisão.

Na segunda turma do STF, por outro lado, destaca-se a importância da proteção à liberdade de ir e vir que o remédio constitucional do habeas corpus busca assegurar. No voto do ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, há a menção ao julgamento de um habeas corpus coletivo substitutivo de revisão criminal que libertou do sistema prisional, nas palavras do ministro, “4.500 mulheres lactantes e gestantes”, além de “cerca de 2.000 crianças que estavam atrás das grades”.

Na mesma linha, o ministro Marco Aurélio afirma ser o habeas corpus “remédio heroico”, adequado em qualquer situação jurídica que envolva a liberdade. Aqui, o ministro Marco Aurélio vai na linha da construção da possibilidade de manejo de habeas corpus em todas as dimensões da liberdade, algo que historicamente a chamada “doutrina brasileira do habeas corpus” em outro contexto histórico, mas com construção doutrinária e jurisprudencial no âmbito do próprio STF, sedimentaram no direito brasileiro. Todavia, esse manejo da historicidade pode cair em anacronismos, como veremos mais adiante.

Ao que parece, a divisão interna do STF em temas ligados à liberdade individual aponta para uma falta de uniformidade jurisprudencial em um tema de importância capital para o Estado de Direito e para a própria efetivação do ideal democrático. A consequência é que a concessão ou não de uma ordem de habeas corpus, no âmbito de uma Suprema Corte, depende menos do direito e mais da sorte. Indo à primeira turma, o HC, a depender do caminho processual trilhado, tem um destino, podendo sequer ser conhecido; na segunda turma, pelos mesmos motivos, pode ter um deslinde bem diferente, como vimos nos exemplos acima trazidos. Tanto em um caso quanto em outro, o STF não contribui para a estabilização e a estruturação jurídica das bases necessárias para a previsibilidade da utilização do habeas corpus, transformando um remédio constitucional fundamental em um curinga manejável ao sabor do voluntarismo e do desejo nem sempre fundamentado de quem decide.

Essa tese ficou mais clara quando ouvi com atenção os detalhes dos votos dos ministros no quase-julgamento da última quinta e me deparei com certos argumentos que me causaram espécie e muita preocupação, sobretudo quando desenvolvidos num contexto que deveria discutir a dimensão do direito fundamental de liberdade no âmbito da mais alta corte de justiça do Brasil. Vou destacar momentos específicos de ministros que votaram, quanto à preliminar, em sentido diametralmente oposto, mas a luz de alerta persiste ligada de forma intermitente, independentemente do teor do voto.

Comecemos pelo voto do ministro Luiz Fux. Um dos momentos mais graves vivenciados naquela quinta-feira foi o fato de um ministro do STF ignorar de forma solene o habeas corpus enquanto aquisição evolutiva da sociedade. Afirmou o ministro Fux que combate o "uso promíscuo do habeas corpus", nesses termos. Pensar na utilização do remédio constitucional que busca garantir o direito de liberdade como algo "promíscuo" é fazer pouco do papel institucional do STF no debate dos direitos e no manejo das garantias fundamentais. É dizer que lutar pela liberdade, por um critério quantitativo de remédios impetrados, é algo "vulgar" e "imoderado", para usar outras expressões trazidas pelo ministro em seu voto. Para fundamentar de forma aparentemente qualitativa a tese da "promiscuidade", Fux traz um trecho da ementa de um acórdão proferido e relatado pelo ministro Celso de Mello, nos seguintes termos:

“A competência originária do STF, por qualificar-se como complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida, não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Constituição da República”.

Fia-se o ministro no argumento de que, pelo fato de a competência do STF ser de “direito estrito”, restrita no seu entender às hipóteses indicadas no art. 102, I, da Constituição da República, haveria uma "promiscuidade" no uso do habeas corpus.

Esquece o ministro que a alínea "i" do mesmo art. 102, I – “direito estrito”, portanto – da Constituição da República reconhece o STF como órgão competente para processar e julgar o habeas corpus quando o coator for Tribunal Superior, exatamente a hipótese do caso em julgamento na sessão de quinta-feira, 22 de março de 2018. Por amor ao debate, mesmo que considerássemos o habeas corpus em questão como um substitutivo do Recurso Ordinário Constitucional, a Carta da República permite o manejo dos dois instrumentos processuais, tese salientada pelo ministro Alexandre de Moraes em seu voto, e por tratar-se de direito à liberdade de ir e vir, a forma aí utilizada – o habeas corpus ou o Recurso Ordinário constitucional – seria compatível com nossa ordem jurídica. Em síntese, o "fundamento" jurisprudencial trazido pelo ministro desautoriza a tese por ele defendida.

Outro destaque que faço no voto do ministro Fux é o anacronismo histórico na passagem em que destaca que a doutrina do habeas corpus foi construída para a proteção frente a agressões contra crimes de opinião, em um contexto “em que as liberdades públicas estavam suprimidas”, suscitando que não se imaginava habeas corpus para situações envolvendo crimes de lavagem de dinheiro e outras. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes ao comentar essa passagem do voto do ministro Fux, a chamada “doutrina brasileira do habeas corpus” travou um debate sobretudo quanto ao alcance do remédio, como a possibilidade de ser utilizado caso, por exemplo, a liberdade de expressão viesse a ser maculada, não apenas a liberdade de ir e vir.

É o caso do habeas corpus 3.536, de 1914, em que o então Senador pela Bahia Ruy Barbosa era paciente e impetrante. No contexto daquele Brasil, à época em Estado de Sítio, o Senador discursou contra o Governo por conta da prorrogação do regime de exceção por seis meses, e Ruy pretendia publicar os discursos legislativos em O Imparcial, mas o primeiro delegado auxiliar de polícia, “em nome do seu chefe, dr. Francisco Valladares”, determinou a proibição da publicação dos debates do Congresso Nacional. O STF concedeu a ordem de habeas corpus requerida, entendendo, em síntese superficial, que a liberdade de expressão também poderia ser protegida pelo habeas corpus.

Além dessa construção quanto ao alcance do remédio para situações de violação a outras dimensões da liberdade, não havia, quando da construção da doutrina brasileira do habeas corpus, legislação específica e, portanto, tipificação penal sobre lavagem de dinheiro. Pelo raciocínio do ministro Fux, é como se estivéssemos diante das seguintes situações: a) não seria cabível o habeas corpus no estado de direito e na democracia, já que ele teria sido concebido apenas num contexto de supressão das liberdades públicas; ou b) o remédio constitucional do habeas corpus só seria aplicável às situações vivenciadas em contextos sociais bem menos complexos e em muito anteriores no tempo à promulgação da Constituição de 1988, que Luiz Fux, como ministro, deve atuar institucionalmente para que o STF seja seu guardião, e portanto levar a sério os direitos e garantias fundamentais ali estipulados.

Outro momento que merece destaque é a fala do ministro Gilmar Mendes. Discorreu corretamente no plano teórico sobre direitos fundamentais , tema de sua predileção e que fez parte de sua formação intelectual. Mas lá pelas tantas, na volatilidade da oralidade, vem a seguinte passagem:

“É difícil me imputar simpatia pelo PT, como todo mundo sabe. Cito Ruy Barbosa: ‘Se a lei cessa de proteger os nossos adversários, cessa virtualmente de nos proteger’ ”.

O ministro confirma o que se coloca como público e notório. Além de confirmar, afirma, nas entrelinhas do discurso, que o julgamento que envolve proteção ou não dos jurisdicionados não se baseia nos seus direitos e deveres, mas na relação baseada na dinâmica “amigo/inimigo”. Se o próprio ministro declara não ter simpatia pelo PT, deveria averbar-se suspeito de julgar quaisquer ações que envolvam, direta ou indiretamente, o Partido dos Trabalhadores. E deveria fazer o mesmo se declarasse dificuldade de imputação de simpatia por qualquer outro partido político, pessoa ou organização da sociedade civil. O mesmo deveria acontecer nos casos de amizade e proximidade nas relações públicas, privadas e no convício social mais próximo.

No que diz respeito à parte final do quase-julgamento, quando o STF deliberou sobre a suspensão da sessão e a concessão de salvo-conduto ao paciente, trago a síntese do professor português António Hespanha, publicada em seu perfil do Facebook:

“As lições que eu tirei da sessão do STF:

– Um compromisso particular de um juiz pode comprometer a conclusão de uma sessão de julgamento que regimentalmente não podia ser interrompida;

– O regimento do STF é menos importante do que um cartão de embarque;

– Quase metade dos juízes entendem que quem pede uma medida urgente de habeas corpus deve arcar com as consequências da indisponibilidade dos juízes para cumprir pontualmente os seus deveres de fazer justiça;

– Quase metade dos juízes não sabem distinguir uma decisão sobre a substância da questão de uma decisão provisória sobre um aspecto processual;

– As decisões de um alto tribunal têm grandes semelhanças com os resultados da loteria.”

Quanto ao que pode acontecer no julgamento do mérito na sessão do dia 4 de abril, o mais provável é que prevaleça a tese de Alexandre Morais da Rosa, publicada recentemente no Conjur: o habeas corpus é denegado, preservando-se genericamente a possibilidade da prisão após decisão de mérito em segunda instância, mas remetendo a prisão para um momento futuro, frente a possíveis recursos e decisões tomadas no STJ e no STF.

Como sintetizou o jurista catarinense, “Lula perde, mas ganha”, porque uma das facetas mais interessantes do direito é como ele lida com seus efeitos na dinâmica do tempo. Temas como modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, agora, o momento da possibilidade de prisão após decisão em segunda instância mostram que nem o tempo é linear, muito menos a sua relação com o direito. O STF mantém a possibilidade de prisão a partir de decisão de mérito em segunda instância, e com isso não compra uma briga com o Judiciário, o mercado e a grande mídia, mas o início da execução provisória da pena não se dá imediatamente. Em resumo: “poder ser preso, pode. Mas não agora”. Depende do que pode vir a acontecer em grau de recurso em Brasília, e isso depende dos detalhes específicos do processo no STJ e no STF. É o espaço das possibilidades, não das definições imediatas.

Rodrigueanamente, “todo fato tem sua aura”. Vimos aqui várias dessas entrelinhas pairando nesta quase-coluna. O momento triste em que vivemos representa não só uma crise entre os poderes, mas um “sambalelê” nas estruturas internas do próprio STF, uma corte sem liderança e capitaneada por interesses outros para além do debate técnico e de alto nível sobre o direito – algo que já vem sendo discutido há tempos pelas e pelos juristas brasileiros e que se agravou ainda mais com a abertura da Caixa de Pandora, no ano de 2016. O que podemos dizer da mais alta corte e, por tabela, da justiça brasileira? “Fé cega, faca amolada”.


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