EUA querem paz com a Coreia do Norte para apontar armas contra o Irã

Em política, o real está no que não se vê, escreveu José Martí, no século XIX. Hoje, continua sendo verdade. Para a surpresa até de aliados e membros de seu governo, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou no mês passado sua disposição para realizar, já em maio, uma cúpula com Kim Jung-un, líder da Coreia do Norte.

Ilustração: Tainan Rocha

Essa será a primeira reunião de nível presidencial entre os dois países (caso realmente aconteça) além de um desfecho contraditório com a política seguida por Washington até então. O que não está sendo visto?

Desde sua posse em janeiro do ano passado, Donald Trump não só manteve a política de pressão sobre Pyongyang herdada de Obama, como a intensificou. Novas sanções foram exigidas e obtidas nas Nações Unidas e grandes exercícios militares foram realizados em parceria com as forças sul-coreanas, em ostensiva provocação. Além disso, os EUA partiram para uma diplomacia agressiva contra a China, principal aliado e parceiro econômico da Coreia do Norte, exigindo restrições comerciais que estrangulassem economicamente Pyongyang. Mais de uma vez, autoridades em cargos elevados, a começar pelo presidente, declararam que a guerra não seria um problema para os Estados Unidos.

Em resposta, Pyongyang avançou cada vez mais nos objetivos de seu programa balístico e nuclear. A cada soco na mesa dado por Washington, a Coreia do Norte respondia com novos e mais importantes testes. Em novembro do ano passado, logo após Trump ameaçar fazer chover “fogo e fúria” sobre o país de Kim Jung-un, o mais potente míssil já testado pelos norte-coreanos sobrevoou o Mar do Japão perfazendo uma curva que, em seu ápice, chegou a 4,5 mil km de altitude. O mesmo míssil, em uma rota convencional, teria capacidade para atingir o território americano dos Estados Unidos.

É desde essa nova posição de força, construída com frieza e paciência, que a Coreia do Norte aceitou sentar-se à mesa. Trata-se de uma enorme vitória de sua política e de uma demonstração da possibilidade concreta de se enfrentar o status quo internacional. Ao dobrar a aposta a cada nova investida de Washington no caminho da guerra, o governo norte-coreano desnudou o blefe do adversário.

O anúncio norte-americano chega envolto em uma nuvem de contradições. A primeira é o inusitado de uma reunião pacífica ser precedida por um espetáculo de agressões verbais entre Trump e Kim Jung-un, cujas cenas vão das dramáticas ameaças de “chuvas de fogo” até as sugestões maldosas sobre a idade, as condições mentais, a altura e o excesso de peso um do outro. Além disso, outros sinais enviados pela Casa Branca ao lado da proclamada disposição para o diálogo reforçam a contradição.

Trump dispensou do governo aqueles que mais apostavam no diálogo como estratégia para solucionar a escalada de tensões com a Coreia do Norte, substituindo-os por adeptos confessos da opção militar. Tanto Mike Pompeo, novo secretário de Estado (cuja nomeação ainda depende da aprovação pelo Congresso dos EUA), como John Bolton, guindado ao posto de assessor de segurança nacional, são “falcões” ultradireitistas de olhos arregalados.

Pompeo, em mais de uma ocasião, afirmou que a única saída aceitável para os EUA nessa questão seria a desnuclearização completa da Coreia do Norte, impossível de ser obtida, conforme ele mesmo, pela via diplomática. Por sua vez, Bolton defendeu abertamente, em fevereiro deste ano, o direito dos EUA a uma “guerra preventiva” para desarmar Pyongyang. O novo assessor de segurança escolhido por Trump já serviu a Reagan e aos dois Bush e tem no currículo a seguinte sinceridade, rara entre os altos funcionário do império: "Não existem 'Nações Unidas’, mas sim uma comunidade internacional que ocasionalmente pode ser liderada pelo único verdadeiro poder remanescente no mundo, os Estados Unidos, quando isso for compatível com nossos interesses”. Como interpretar um convite ao diálogo seguido pela escalação de conhecidos adversários do diálogo?

Não bastasse, Trump pretende rever os termos do acordo assinado com o Irã ainda no governo Obama para regular o programa nuclear daquele país. Esse tratado não foi apenas um entendimento entre duas partes, mas sim um consenso obtido sob a chancela da ONU após muita negociação – Rússia e China incluídas.

Destruir unilateralmente um acordo construído no âmbito das Nações Unidas, aprovado por unanimidade no Conselho de Segurança, com seu cumprimento rigorosamente atestado pela Agência Internacional de Energia Atômica envia qual recado a Kim Jung-un? Que tipo de acordo sobre um programa nuclear os EUA esperam que o governo norte-coreano aceite de um Estado que não cumpre o que acorda? Trump tem até o dia 12 de maio para materializar essa decisão, antes, portanto, de uma reunião com Pyongyang.

Diante de gestos tão contraditórios, o que os EUA buscam obter com essa guinada em sua relação com a Coreia do Norte? O objetivo defendido pelos “falcões” escalados para o governo é absolutamente irreal: uma desnuclearização. Imaginar que Pyongyang abrirá mão de suas armas, como já defenderam Trump, Pompeo e Bolton, é absurdo e eles sabem disso. Mesmo um acordo que contemplasse algumas restrições no programa nuclear e balístico em troca de incentivos econômicos e garantias de segurança já seria difícil.

Ao contrário do que anunciam, os EUA só se dispuseram a ir à mesa porque foram derrotados pela estratégia norte-coreana. Talvez seja plausível imaginar (e só talvez!) que a Coreia do Norte aceite congelar seu programa no ponto em que está em troca do fim das sanções econômicas e da redução dos exercícios militares norte-americanos no sul. Uma solução que, de passagem, também interessaria à China. Resta saber se Washington estará disposta a evidenciar que, nesse caso, sua ferocidade pública não passava de uma fracassada máscara para amedrontar.

De qualquer modo, independentemente dos termos de um acordo, sentar-se com Kim Jung-un é um reconhecimento de derrota que só seria compensado por um ganho estratégico fora do campo de visão da península da Coreia. E aqui os olhos devem voltar-se para Teerã.

Se de fato cancelarem o acordo com o Irã, os EUA estarão desestabilizando um equilíbrio frágil no Oriente Médio e Ásia Central. E sabem disso.

É preciso ter em mente que a aproximação entre Rússia e o Irã amparou tanto o retorno da primeira à geopolítica do Oriente Médio como a segurança e ampliação da influência do segundo. A vitória dessa aliança na sustentação do governo sírio foi um golpe para os EUA e seus aliados. O eixo que se desenha hoje entre Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita tem caráter belicista e se volta contra o Irã, que é o mesmo que voltar-se contra a Rússia. Por outro lado, na frente europeia, Washington busca o isolamento diplomático de Moscou após o anúncio de armas russas capazes de furar o bloqueio de um escudo antimísseis.

Ao romper o acordo com o Irã, os EUA estão buscando o caminho do conflito no Oriente Médio tanto para enfraquecer a posição da Rússia na região, como para voltar a ter pretextos que embasem ataques contra o Irã, um Estado insubmisso cercado por rivais que optaram pela aliança com Washington. Para bancar uma política de retomada da hegemonia naquela região, os EUA precisam baixar a temperatura na península coreana. Mesmo os “falcões” que Trump levou para o centro do poder sabem que em um mundo multipolar não se pode ao mesmo tempo guerrear todas as guerras.

A verdadeira mudança estratégica da Casa Branca não é a opção pelo diálogo, como parece deixar a concluir a eventualidade de uma cúpula com a Coreia do Norte, mas sim uma troca de foco que não abandona a agressividade. Tanto o cenário como os ganhos estratégicos possíveis são melhores para os EUA no Oriente Médio que no Sudeste da Ásia.

Internamente, existe ainda para Trump a vantagem de uma paz com os grupos que insistem no caráter central da rivalidade com Moscou. A ameaça de impedimento em virtude da alegada influência russa nas eleições dos EUA é uma faca no pescoço do presidente norte-americano. A queda de Rex Tillerson, ex-secretário de Estado, um homem condecorado por Vladimir Putin como “amigo da Rússia”, pode ter aberto o campo para os que, mesmo não gostando da Coreia do Norte, entendem que Moscou é um desafio mais sério a Washington.

Se de fato o encontro entre Trump e Kim Jung-un ocorrer, será com os olhos postos no Irã, e não nas perspectivas de paz, que o Air Force One voará para a mesa de negociações.

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