“A Forma da Água”

Em filme que mescla gêneros e temas, cineasta mexicano Guillermo Del Toro trata da solidão, da superação das diferenças e da Guerra Fria.

Não se trata de olhar o mundo a partir da Guerra Fria (1946/1991), que opôs a União Soviética (1917/1991) aos Estados Unidos, mas de situar a feroz disputa entre as duas superpotências desencadeada pela Corrida Espacial por mais de três décadas (1957/1975). Aparentemente, este é o tema central deste “A Forma da Àgua”, ganhador de quatro Oscar, em 2018 (Filme, diretor, trilha sonora, direção de arte). O diretor/roteirista mexicano, Guillermo Del Toro (09/10/1964) cria uma série de conflitos e violência entre espiões para matizar a contraposição de uma época.

Com esta construção dramática, condutora da narrativa, Del Toro constrói subtramas que reforçam o suspense, o clima opressivo, a tentativa dos EUA de superarem a URSS (União das República Socialistas Soviéticas), com seu programa espacial. Inclusive o general estadunidense Hoyt (Nick Clancy), diretor do Centro de Pesquisa Aeoro-Espacial (OCCAM), tinha medo de que os soviéticos continuassem à frente de seu país no espaço. Principalmente depois de o astronauta soviético Yuri Gagarin (1934/1968) voar na capsula Vostok, em 12/04/1961, e ser o primeiro homem a chegar ao espaço, indicando a superioridade da URSS.

A frase de Hoyt, numa reunião com sua equipe, sintetiza seu horror diante deste fato. “Aqueles bastardos mandam um cachorro (ao espaço) e nós rimos, mas quando nos damos conta, mandaram um ser humano para lá”. É uma contextualização perfeita para se perceber o clima entre a URSS e os EUA na época. Com este contexto histórico Del Toro dá veracidade à sua trama, mas o que a sustenta é a inclusão da criatura anfíbia (Doug Jones), saída dos rios da Amazônia. Misto de peixe e homem, a emitir sons de peru e pombo, ele reforça a guerra espacial, entre os dois países.

URSS e EUA disputam a criatura anfíbia

Esta construção dramática dá clima de filme de espionagem, mistério e suspense a este “A Forma da Água”. A disputa pela Criatura, empreendida pelos EUA e a URSS, faz o agente duplo soviético Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbang) a dividir-se entre os dois lados. Assim, a ficção reflete a realidade no momento em que Inglaterra e Rússia entram em conflito devido ao envenenamento do suposto agente duplo russo Sergei Skripal e sua filha Yulia, em Londres. Fato corriqueiro na espionagem entre países do Primeiro Mundo, serve apenas para atestar o quanto ainda se cria “fatos”. É nesta mescla que Del Toro subverte a narrativa, reforçando-a com personagens e múltipla condução reflexiva.

Deste modo, Del Toro estrutura, como ocorre em “O Labirinto do Fauno (2006)” duas narrativas que se mesclam para dar sentido aos temas encenados: I – a do anfíbio encarniçadamente disputado pelos cientistas e espiões estadunidenses e soviéticos; II – a dos marginalizados e marginalizadas que cuidam das tarefas mais árduas, pondo sua dignidade e saúde em risco. Daí emerge a faxineira caucasiana Elisa (Sally Hawkins), relegada à solidão, devido a mudez. Sem vida amorosa, salvo sua amizade com a colega de faxina no OCCAM, a afrodescendente Zelda Fuller (Octavia Spencer), e seu amigo gay e artista plástico Giles (Richard Jenkins), com quem divide pequeno apartamento sobre decadente cinema.

É com estes três personagens que Del Toro equilibra sua narrativa, dando-lhes voz, vida e visibilidade. O foco da narrativa se expande da corrida espacial (1957/1975), em Baltimore, EUA, para a encantatória relação amorosa de Elisa com a Criatura Anfíbia. Eles se descobrem ao se explorarem em troca de olhares, testando um ao outro, ela tomando a iniciativa, ele se sentindo amparado. Em belas sequências, ela o seduz enfileirando ovos à beira da piscina onde ele foi amordaçado e a surpreende ao mostrar-se fã de música e capaz de ser carinhoso.

Del Toro reconstrói a fábula da Bela e a Fera

Esta moderna relação entre a Bela e a Fera, numa referência ao conto da francesa Gabrielle Suzanne Barbot Villeneuve (1695/1755), encanta por representar a superação do preconceito ao outro, ao diferente. A Criatura Anfíbia, de cabeça de peixe e corpo de homem vai, aos poucos, se dando conta de que deve oscilar entre a violência, provocada por seus captores estadunidenses, e a necessidade de sobreviver aprisionada, longe de seu habitat. Seu algoz é o chefe de segurança do OCCAM, Strikland (Michael Shannon), que a tortura com o bastão elétrico até o desmaio.

Del Toro, nas sequências de confrontos entre espiões soviéticos e estadunidenses e da Criatura Anfíbia com Strikland e os seguranças do OCCAM, usa a hipper-violência para dar conta do que estava em jogo. Principalmente quando Elisa encontra os dois dedos de Strikland decepados e o sangue espalhando pelo piso da agência secreta. Há muito do Sam Peckinpah (1925/1984), de “Sob O Domínio do Medo”(1971) na forma como ele mostra a capacidade do homem reagir com virulência ao investir-se contra quem o afronta, o desafia ou para vingar alguma perda.

São nestas sequências que Del Toro desconstrói preconceitos. Strikland é capaz de adorar o Cadillac azul metálico, torturar o ser vivo e assediar sexualmente Elisa, obtendo prazer nisto. Já a Criatura Anfíbia, não, quando mata o gato é porque tem fome. Elisa ensina-o diferenciar as situações e ser menos ameaçador, e ele se mostra receptivo. Não deixa de ser referência ao Anfíbio, personagem-título de “O Monstro da Lagoa Negra (1954)”, e grata homenagem de Del Toro ao cineasta estadunidense Jack Arnold (1916/1992), diretor de “O Incrível Homem Que Encolheu (1957)”. Mas é também mostrar o quanto estigmatizar é pernicioso.

Narrativa une dois seres diferentes

Além de ser um filme-caleidoscópico, “A Forma da Água” transita entre a fantasia, a ficção e a realidade. Pela TV p&b Elisa e Giles se encantam com os musicais hollywoodianos dos anos 30 e 40, durante a II Guerra Mundial (1939/1945). São nestas escapistas sequências que ela dissipa suas frustrações ao imitar o sapateado de Shirley Temple (1928/2014) e Betty Grable (1916/1973). Diferente da brilhante sequência em p&b que Del Toro a faz dançar com o Anfíbio, configurando sua felicidade por estarem apaixonados um pelo outro. São diferentes maneiras de expor em imagens as emoções a brotar em distintas situações do existir.

Depois de transitar por vários gêneros, é no desfecho que Del Toro refaz a característica composição dos personagens femininos do filme noir. Em vez da mulher fatal que destrói o frágil amado, é Elisa quem conduz a ação, sem fazer jogo duplo para se salvar, enquanto o Anfíbio tentava sobreviver. O happ-end diz muito sobre o papel da mulher e do outro nas relações entre seres diferentes neste mergulho nas trevas que o capitalismo neoliberal mergulhou o planeta neste princípio de Terceiro Milênio e ele mesmo agoniza ao tentar concentrar sua podre supremacia.

Toda esta estruturação dramática e referencial é sustentada pelo clima advindo da cor e da luz em tons verdes, amarelos e vermelhos dos corredores, ruas e salas do OCCAM. Dá a sensação de ambiente molhado, escorregadio, por onde transitam seus oprimidos funcionários. Diversos dos restritos ambientes frequentados por Giles ou o apartamento habitado por ele e Elisa. Ou mergulhados na escuridão, como nas sequências do cais. Isto torna a narrativa compacta, transformando os personagens em espectros de uma fábula matizada pela realidade criada pelo aguçado olhar do diretor de fotografia Dan Laustsen e do próprio Del Toro.

Fascismo soterra sonhos de garota e guerrilheiros

Embora complexo, encantatório e ainda assim realista, com moderna construção estética e dramática, com traços hollywoodianos, Del Toro, em “A Forma da Água”, se afasta da clareza e da contundência de “O Labirinto do Fauno”. Neste, mostra a resistência dos guerreiros republicanos aos soldados franquistas durante a estabilização do General Francisco Franco Barramonde (1892/1975) no poder, após a Guerra Civil Espanhola (1936/1939), e a fantasia da garota Ofélia (Ivana Baquero), que sonhava com fadas e se envolveu com o misterioso e esperto Fauno (Doug Jones).

O entrelaçar destas duas tramas termina por mostrar que a esperança da criança e a luta da juventude para construir um país melhor foram soterradas pelos fascistas. Entretanto, Del Toro se demonstra bom construtor de desfecho, ao evitar, em “A Forma da Água”, a contraposição bem versus mal, e termine por montar um confronto em que os vilões acabem estendidos na molhada plataforma do cais, Elisa encontra, assim, seu companheiro e os fascistas da OCCAM sucumbem. Significa que a solução de uma relação à dois pode ser a abertura de uma trinca na parede do preconceito e da opressão, desde que sejam enfrentados.

A Forma da Água (The Shape of the Water). Produção/roteiro/direção: Guillermo Del Toro. Música: Alexandre Desplat. Editor: Roney Wolinsk. Fotografia: Dan Laustsen. Elenco: Sally Hawkins, Octavia Spencer, Michel Shannon, Richard Jenkins, Doug Jones, Michel Stuhlbang.

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