A faca amolada do STF: Uma quase-coluna (parte 1)

Aprendemos nas Faculdades de Direito, desde os primeiros períodos do curso, um dos topoi mais marcantes para a nossa atuação: “o direito não socorre os que dormem”.

Esse brocardo se desdobra nas mais variadas formas de vivenciar a atividade jurídica, como apresentar recursos dentro do prazo, diligenciar para que os pedidos relacionados aos supostos direitos do cliente sejam apreciados no processo em duração razoável, tomar a iniciativa para o exercício de determinado direito, sobretudo quando envolve a utilização de garantias para salvaguardar direitos fundamentais, dentre outros.

Relembrando Carlos Heitor Cony, esta quase-coluna – que, como a sessão do STF, não termina quando começa – pretende trazer alguns aspectos relacionados ao julgamento, iniciado em 22 de março de 2018, do habeas corpus preventivo 152.752/PR, impetrado junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), cujo paciente é Luiz Inácio Lula da Silva, e verificar como no acontecer do direito esse brocardo, ensinado como um adágio insofismável e sem retoques, representa muito mais um paradoxo do “fazer direito”.

Vale salientar que no ano de 2016 foram propostas duas Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs 43 e 44) do art. 283 do Código de Processo Penal junto ao STF, com o intuito de restabelecer o entendimento de que o cumprimento da pena só poderia acontecer após o trânsito em julgado de decisão condenatória.

Como nos informa Bruno Galindo em seu recente artigo no Justificando, o ministro Marco Aurélio, relator da ADC 44, proferiu despacho liberando a ação para ser incluída em pauta desde o dia 4 de dezembro de 2017, portanto há mais de três meses, e a ministra Carmem Lúcia, presidente do Tribunal, até este momento não pautou a ADC para ser julgada em plenário.

Acompanho a linha de raciocínio do prof. Bruno Galindo: na ADC, a discussão é de controle de constitucionalidade em abstrato, não relacionada a uma situação processual específica, pelo que a decisão produziria efeitos “contra todos”, erga omnes, em tese sem casuísmos.

Numa discussão sobre a compatibilidade normativo-constitucional em abstrato, o debate ao menos em tese fica mais circunscrito em torno da temática constitucional propriamente dita, não necessariamente nos reflexos que a decisão trará em uma determinada situação ou caso orientado pelos nomes da capa do processo ou pelos timbres dos escritórios nas petições.

Mas a presidente do STF afirmou que pautar essa discussão mediante a decisão da ADC seria “apequenar o Supremo”. Uma curiosidade: que tipo de conduta “apequena” o STF? Cumprir uma de suas atribuições constitucionais ao promover o exercício da jurisdição constitucional ou ter o dissabor de ver a presidente, fora de qualquer agenda institucional, no recesso do seu lar com pessoas vinculadas ao poder Executivo que são investigadas pelo Tribunal por ela presidido? Voltamos ao topos que inicia nosso quase-artigo: quem dorme? Será que o direito deixa de construir sua rede de proteção, a despeito desse “sono”?

Na avant première do quase-julgamento em análise, durante o debate em torno da ADI 5394, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB contra o §12 do art. 28 da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, que permite doações a candidatos nas eleições “sem individualização de doadores”, vimos os ministros Gilmar Mendes e Luis Roberto Barroso envolvidos em mais um expediente deplorável para a história do STF.

Na repercussão do ocorrido nas redes sociais e nas conversas informais, pessoas comportam-se como torcedoras e torcedores em euforia, “em transe num êxtase”, como cheer leaders “em defesa da moralidade” personificada nos combatentes, cada qual em seu respectivo corner. “Neste canto, pesando uma tonelada, o-que-diz-as-verdades-que-eu-quero-ouvir-e-adoçam-meu-paladar; no outro canto, pesando a mesma tonelada, o-que-é-odiado-mas-corajoso-e-preparado”.

Ambos – e a claque, por tabela – se perdem e a instituição, aquela que deveria ser preservada, fica ainda mais maculada. Dessa luta, quem é nocauteada de verdade é a Suprema Corte e com ela o estado de direito e todas as dimensões de direitos fundamentais, incluindo aquelas relacionadas à liberdade – como veremos na parte 2 desta quase-coluna.

O que se espera de ministros do STF no exercício de suas funções é o debate técnico de alto nível sobre os problemas jurídicos que são levados a julgamento, não a construção de argumentos ad hominem, com pretensão de verdade apriorística, com o intuito de fazer juízos de valor quanto ao (ou à falta de) caráter e personalidade de colegas.

Naquele momento, enquanto o processo que iria julgar o auxílio-moradia voltava bem de mansinho para o aconchego da gaveta, Carmem Lúcia suspendeu a sessão e tentou – tentou – pôr fim ao bate-boca, mas os pugilistas da toga preta não deram ouvidos à presidente da sessão e do STF. Dois elementos que transparecem nessa atitude: a misoginia entranhada na estrutura do Supremo – e não apenas do STF –, atrelada à falta de liderança de quem apequena a instituição, por alguns dos motivos já expostos aqui, e se apequena no exercício do comando da Corte.

Essa falta de liderança, que pode ter a misoginia como um dos fatores, transformou-se em um clima de tensão hitchcockiano com trilha de Bernard Herrmann. A divulgação de uma reunião informal entre os magistrados agendada para a terça, dia 20 de março, proposta pelo decano da casa, ministro Celso de Mello, foi o trailer desse filme de suspense. Por quê? Por que a reunião teria por objetivo impedir um constrangimento inédito a Carmem Lúcia, já que havia o ânimo de questionar publicamente a presidente, durante a sessão plenária, sobre os motivos pelos quais a ADC 44, citada aqui anteriormente, ainda não tinha sido pautada para julgamento.

Seria, segundo o ministro Celso de Mello, um “constrangimento inédito” o fato de, por exemplo, o ministro Marco Aurélio, relator da ADC, propor uma “questão de ordem” em sessão. Mas a reunião não aconteceu, já que o encontro dependia de convites informais jamais enviados pela presidência às ministras e ministros. Muita tensão entre os Supremos. “Fé cega, faca amolada”.

Como a presidente havia se comprometido com a “opinião pública” – ou seja, com a grande mídia controlada por poucas empresas familiares envolvidas em múltiplos conglomerados empresariais de comunicação – de que pautar a discussão seria “apequenar o Supremo”, preferiu levar ao plenário o habeas corpus 152.752/PR, impetrado por Luiz Inácio Lula da Silva, para dar a impressão de que manteria a palavra.

Volto a concordar com a tese e a expressão de Bruno Galindo: a “fulanização”, tão cara ao desejo da mídia e do mercado financeiro, contribuindo para a polarização que vemos no Brasil de hoje, é disfuncional ao STF e ao funcionamento das instituições democráticas. Mais uma vez, o Supremo dorme. E se protege.

Eis que chega o grande dia. Depois da avant première, show time!

Como o reino mineral cantado em prosa e verso por Mino Carta tão bem sabe, o habeas corpus é “remédio constitucional”, uma garantia para a proteção de um dos direitos fundamentais mais celebrados e festejados no estado de direito: a liberdade de ir e vir. Portanto, não estamos diante da diatribe maniqueísta esquerda versus direita, como se existissem categorias sólidas e estanques no tempo para lidar com essa distinção, mas de um mecanismo de limitação ao poder do Estado e de um “antídoto” a ser usado frente ao arbítrio no exercício do poder. Nada de novo e trivial. Aula de primeiro período de faculdades de Direito. Mas algo tão levado a sério no Estado moderno que prescinde até da forma, frente à percepção de que a proteção à liberdade está à frente do revestimento formal por meio do qual o habeas corpus se apresenta. Mais liberal, impossível.

Todavia, o quase-julgamento do dia 22 de março envolveu boa parte do debate na análise de argumentos em torno do conhecimento ou não do remédio impetrado. Caso algum argumento em sede de preliminar fosse acatado pela maioria do plenário do STF, o writ não seria conhecido, o que impediria a análise do mérito do habeas corpus.

Antes da discorrermos sobre a argumentação preliminar, vamos à síntese do que está em julgamento: trata-se de habeas corpus (HC) impetrado contra decisão monocrática do ministro Humberto Martins que, no exercício da presidência do STJ, indeferiu pedido de liminar em sede de HC.

O habeas corpus em julgamento sofreu um aditamento por conta de fato superveniente em face do julgamento do mérito pela 5ª Turma do STJ, que, em 06 de março de 2018, denegou a ordem requerida pelo paciente. Em 16 de março de 2018, o relator do habeas corpus 152.752/PR no STF, ministro Luiz Edson Fachin, conheceu do pedido de aditamento efetuado pela defesa e indeferiu os pedidos de liminar requeridos, encaminhando o writ ao plenário para julgamento.

Importante destacar os argumentos trazidos em sede de preliminar, sintetizados com clareza no voto da ministra Rosa Weber, da seguinte forma:

1. O habeas corpus não poderia ser conhecido em face do que determina a Súmula 691 do STF, que diz expressamente: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.”;

2. Substituída a liminar pelo acórdão de mérito, afirma a ministra Rosa Weber que “teria ocorrido, como de fato ocorreu, a substituição do título prisional”, pelo que deveria ter sido impetrado outro habeas corpus com nova fundamentação relativa à situação relacionada à decisão de mérito, não àquela monocrática de indeferimento de liminar. Em síntese, nas palavras da ministra Rosa Weber, estaríamos diante da “superveniência de decisão definitiva de tribunal superior correspondendo a novo ato a desafiar ação própria”;

3. O aditamento ao habeas corpus 152.752/PR, efetuado em 16 de março de 2018, seria um substitutivo do Recurso Ordinário previsto no art. 102, II, “a”, da Constituição da República, já que tal ação tem por objetivo permitir ao STF processar e julgar “o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão”. Nessa linha argumentativa, o instrumento processual adequado para levar a pretensão do autor à apreciação do STF não deveria ser o habeas corpus, mas o Recurso Ordinário previsto na Constituição, o que deveria ensejar o não conhecimento do habeas corpus.

Como as ministras e os ministros do STF portaram-se diante desses argumentos? A segunda parte deste texto pretende trazer observações sobre as complementaridades, paradoxos e diferenças da faca amolada do STF na proteção aos que não dormem na luta pela liberdade em uma democracia.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor