A gravidez de Soledad Barrett

O horror, o terror continua vivo, 45 anos depois dos acontecimentos da ditadura brasileira. E a indignação em silêncio forçado também, como veremos a seguir.

Comecemos pela farsa que nega a gravidez de Soledad Barrett. Em 17 de outubro de 2011, o Cabo Anselmo se apresentou no Roda Viva, aqui 

Como já se esperava, ele esteve à vontade, porque os entrevistadores pesquisaram mal a história dos seus crimes, para confrontar suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife.

A determinada altura, no tempo 11:32 do vídeo, o apresentador Mário Sergio Conti lhe pergunta:
“Como o senhor vive, Cabo Anselmo, com essas 6 mortes nas costas, inclusive da Soledad, que era sua companheira, uma paraguaia, estava grávida do senhor, e teve uma morte bárbara…?”
Ao que o Cabo Anselmo responde:

“Quantas pessoas foram assassinadas naquele tempo, e assassinadas com as armas, de ambos os lados?…”

Ao que o apresentador volta no tempo 12:25:
“Soledad morreu dentro de um tonel, com o seu feto aos pés, Cabo Anselmo”.
E o traidor:
“Opa, opa, essa é a versão… essa é uma das versões…”

E o apresentador:
“O senhor está dizendo que é mentira, esses fatos são mentira?”
E o traidor escorrega de lado, desvia para outro ponto::

“A Soledad… eu a conheci em Cuba. A Soledad era uma pessoa, uma poetisa, era uma pessoa doce, era uma pessoa carinhosa. Este era o lado humano. Agora vamos para o outro lado: ela era filha de dirigentes comunistas paraguaios, distribuía jornais, segundo ela própria me contou, do partido comunista nas ruas de Assunção desde pequena, e foi para a Universidade Patrice Lumumba para treinar lá… Então vem cá: quem escolheu este risco, quem escolheu pegar em armas, quem escolheu enfrentar os policiais da ditadura, não fui eu”.

E passa ao largo, na esquiva.

Em outro momento cínico, o Cabo Anselmo se refere a Soledad Barrett para retirar dela a gravidez, e assim se isentar de um hediondo crime, que cai como um acréscimo à traição de entregá-la para a morte. Observem-no aqui neste momento, a partir do minuto 18.59 até 19.36.
Cabo Anselmo: “A Soledad usava DIU, desde que fez um aborto aqui em São Paulo, antes da ida para o Recife”.

Entrevistador: “O senhor contesta a gravidez da Soledad?”
Cabo Anselmo: “Como?”

Entrevistador: “O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica …?”
Cabo Anselmo: “Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim”.

E o entrevistador levanta a bola para o traidor: “Então o feto encontrado lá não era dela?”
Cabo Anselmo: “Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico”.

Se não houvesse história nem testemunhas vivas da gravidez de Soledad Barrett, a falsidade de Anselmo triunfaria mais uma vez. Mas o que a traição impede, a pesquisa revela. Primeiro, em dados mais públicos, leia-se o depoimento de Genivalda Silva, viúva de José Manoel, um dos executados pela delação do Cabo Anselmo na matança da Chácara São Bento. Na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, ela declarou:

“Poucos meses antes de matarem José Manoel. Então Soledad estava grávida e Anselmo me perguntou se eu conhecia alguém pra fazer um aborto em Soledad. Isso eu digo a vocês de coração, não estou mentindo nem levantando falso ao Anselmo. E eu falei pra ele: ‘Anselmo’, que eu nem sabia que ela era a esposa dele, eu disse ‘olhe, jamais, se eu soubesse te indicaria alguém pra fazer um aborto por que só quem tem que tirar a vida de um ser humano é Jesus, e mais ninguém. Por isso eu não lhe ensino’. E ele saiu com José Manoel, com o meu marido, com Zezinho, e a Soledad ficou dois dias comigo na minha casa. Mas ela era assim, uma pessoa muito calma, falava uma linguagem que eu não entendia quase nada, até que eu gostei da maneira dela, mas ela era assim no canto dela. Eu preparava o almoço ela comia, eu preparava a janta ela comia, mas era uma pessoa assim que não abria a boca pra mim pra comentar nada. Só foi uma coisa que eu perguntei pra ela assim:

‘Você quer perder realmente seu filho? Ela balançou a cabeça, disse ‘não’, e as lágrimas desceram’ ”.

Na mesma direção que confirma a gravidez de Soledad Barrett, o militante pernambucano, de nome Karl Marx, falou estas palavras na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara:

“Sempre que a gente estava conversando com o marido, o pseudomarido, pseudocompanheiro, que era o Daniel, sempre que ele estava conversando com a gente, ela estava com minha mãe e com minha cunhada lá na cozinha. E minha cunhada soube que ela estava grávida… Aí foi quando ela disse que estava grávida. Isso eu tenho certeza absoluta. Ela estava grávida”.

O Horror

“Soledad Barrett me deu uma roupinha de bebê”

Aos depoimentos públicos acima, junta-se de modo mais eloquente a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Ela é autora de um livro ainda não traduzido no Brasil, o "Born Subversive: A memoir of Survival", que narra a sua difícil sobrevivência depois da chacina da granja São Bento em 1973.

Nos dias de carnaval, pude conversar com ela. E pude ver o que não queria, nem imaginava. Nadejda descobre um quadro que até então era desconhecido sobre o Cabo Anselmo e Soledad Barrett. Aqui vai resumido, nos limites permitidos, o seu depoimento:

“Como registrar a dor de uma mãe que na calada da noite busca o corpo do filho desaparecido? Como compreender a força dessa mãe que, após vistoriar o corpo do filho morto, desafia e insiste para que os médicos legistas escrevam a real causa da morte: tortura? Como calar a voz dessa mãe que incansavelmente desmente a versão oficial e manipulação dos fatos com seu testemunho? Como ignorar a grandeza dessa mulher que não se limita a cuidar do corpo do filho morto, mas também revela a crueldade que sofreram aqueles que caíram com ele? Assim, essa mãe ajudou não só a identificar as outras vitimas indefesas, como também relatou as torturas por elas sofridas. Dentre as vítimas, ao lado do filho morto, lá estava também outra mulher-mãe conhecida, Soledad, torturada até a morte sem qualquer piedade em seu estado de gravidez. À época, revelar detalhes sobre a brutalidade do Massacre da Granja São Bento era importante não só para desmascarar a versão oficial e atuação de um conhecido agente infiltrado do aparato repressor, mas também porque tamanha crueldade poderia sensibilizar a opinião pública e gerar alguma solidariedade com aqueles que queriam nada mais do que um Brasil melhor. Sou descendente de mulheres muito francas. Desde pequena ouvi suas estórias sem rodeios ou adereços. Embora não constem nos livros, elas estavam presentes, viveram a historia das atrocidades em um Brasil não muito distante e confiaram a mim suas palavras”
E continua, de modo preciso até o ponto:

“Soledad se queixou de gravidez à minha mãe. Tanto minha mãe quanto minha avó viram o casal, mais de uma vez. Por exemplo, em um encontro, Soledad estava enjoada e vomitava por causa da gravidez. Estavam presentes minha mae, tia, Soledad e Pauline…

Minha mãe me falou que ela e Soledad iam à praia juntas, que Soledad parecia feliz com a gravidez, que era bonita e elegante. Soledad Barrett me presenteou uma roupinha de bebê. Ela era uma pessoa doce e amável”.

Agora, vem a crueldade que a memória não sepulta:

“A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”.

Note-se que esse depoimento acaba de vez com o cinismo e sinuosas mentiras que negam a gravidez de Soledad Barrett. Antes, o Cabo Anselmo afirmara que Mércia Albuquerque, por não conhecer Soledad, havia confundido os cadáveres – Pauline, a outra vítima, é que seria a dona do feto. E que, portanto, Soledad estaria livre de qualquer embrião no ventre. Mas acima, o que se vê, é o relato de pessoas que conheciam Soledad, e pelo menos uma delas, enfermeira, a viu no necrotério destruída, com o aborto causado pela morte. O problema é saber se o feto viu a luz ou as trevas no necrotério.

Como horror, isso bastaria. Já ultrapassa do ponto. Mas o inferno continuou para os sobreviventes, como Nadejda relata:

“O ‘cabo’, após o massacre, assume de vez e escancaradamente o seu papel de atroz agente da repressão. Implacável contra todos, inclusive crianças inocentes. Depois do massacre, a sua máscara de simpático é estilhaçada”. E conta a razão: a mãe de Nadejda e uma tia, para não serem mortas, se esconderam num apartamento vazio de um parente. Esse lugar que foi buscado e achado pelo Cabo Anselmo e Fleury. Pelo olho mágico da porta, os dois foram vistos. E vem então mais um trauma: enquanto a campainha tocava, a mãe de Nadejda fechava a sua boca com força, para que ela não chorasse e não denunciasse a presença delas. Apertou com tamanho desespero que machucou o queixo da filha. Nadejda era um bebê com 10 meses de idade. 

Do livro de Nadejda Marques, Born Subversive: A memoir of Survival, copio o trecho da razão que a levou a escrever um livro de memórias:

“Talvez eu escreva porque minha mãe, nervosa e ainda tremendo, segura minha mão e em voz clara me contou que viu o cabo Anselmo, o homem que traiu seu primeiro marido, o meu primeiro Pai. O cabo Anselmo torturou e matou o meu pai e estava caminhando calmamente no calçadão de Copacabana em pleno Rio de Janeiro. Ele vive entre nós. Vez ou outra ele concorda em dar entrevistas e posar para a mídia local. Ele mente. Às vezes ele tenta posar como celebridade ou como um herói da ditadura. Às vezes se faz de vítima. Bem sabe ele que sempre que aparece é como uma ameaça velada, zombando dos que caíram. ‘Era ele’, minha mãe diz. ‘Eu o reconheci e ele caminhava normalmente como se nada tivesse acontecido’. A voz da minha mãe ainda ecoa na minha cabeça sempre que eu desvio o olhar.”

Tanto quiserem mentir, difamar a memória do terror de Estado no Brasil. Tanto quiseram desmerecer a denúncia da advogada Mércia Albuquerque, mas a história afinal dá razão e comprova o que ela uma vez falou:

“Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

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