Clarice Lispector e o carnaval do Recife

“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”.

Assim escreveu Clarice Lispector. Lembro que as crianças de subúrbio no Recife também possuíam esse mesmo sentimento.

Em frente ao Cinema Império, em Água Fria, passavam meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, mulheres, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo nus, todos comprimidos, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, arder até a alma pobre da gente. Toquem o frevo mais alto. Uma explosão de braços e pernas na dança, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que anunciava e não sabíamos: atenção, infância: “nós passaremos”.

Esse era o carnaval do Recife que vi no tempo de menino. Já o carnaval de Clarice é uma festa do mundo que se abre para ela. Abre e fecha, porque na sua crônica há um carnaval de que ela não participava, embora muito o desejasse.

“No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”.

Aqui uma pausa. Eu morei nesse sobrado. Mas que diferença entre o vivido por mim e o narrado por ela. Eu me pergunto se já na frase de Clarice, “sobrado onde morávamos”, se não há um exagero, uma dignificação, uma elipse, que se não mente, omite. Explico. Se o sobrado inteiro era da sua família, então ela não era tão pobre quanto aparece no relato e na biografia de Benjamin Moser. O mais razoável é supor que ela e família ocupassem no sobrado apenas uns três cômodos, como chamamos no Recife à divisão de espaço cujas partes têm a medida de um quarto simples. Bem sei, de viva morada, quando morei no “sobrado da infância de Clarice Lispector”. Em 1978, o sobrado era uma pensão, um pardieiro de paredes úmidas e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, o sobrado é soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os condenados que depois de um dia libertos voltam à prisão. O lugar era segregador e irrespirável.

Nas fotos da internet, o “sobrado da infância de Clarice Lispector” aparece pintado para ser a casa da escritora. Nas imagens, perdeu seu aspecto medonho de pensão de reclusos, virou casa agradável. Para escrever estas linhas, voltei ao sobrado de número 387, na praça Maciel Pinheiro. A placa, onde seria lido algo como “aqui viveu a escritora Clarice Lispector na infância”, está escura, com letras apagadas, quase ilegíveis. Na entrada do que foi a pensão e a casa de Clarice, que ficava ao lado, na Travessa do Veras, por onde eu entrava furtivo, agora está bloqueada por espessa parede com cimento exposto. Mas voltemos à crônica de Clarice.

“Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim”.

Bela é tudo que é belo, como na canção de Capiba. O carnaval do Recife volta e Clarice é bela.

*Trecho do Dicionário Amoroso do Recife

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