Um bispo de luta

Quando o padre Pedro Maria Casaldáliga Plá, nome que adotou no Brasil, chegou às margens do rio Araguaia, em 30 de junho de 1968, ele não tinha ideia de tudo o que o esperava naquele mundo diferente. Cinco décadas se passaram desde então, uma jornada de muita luta em favor dos mais fracos.

Pedro já completou quase um século de vida e reluta em deixar São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, bem em frente à Ilha do Bananal, onde vive desde que chegou. Catalão de nascimento, ele viveu até os 40 anos na Espanha do Generalíssimo Franco, num tempo em que a cúpula da Igreja alisava o regime fascista de lá.

Chegou ao Brasil no período mais duro da ditadura militar e foi parar no barril de pólvora da “fronteira agrícola”, onde os conflitos agrários banalizavam a morte. Tinha tudo pra tucanar, pra ficar em cima do muro e deixar o pau rolar. “A realidade não permitia deixar de optar”, relembra ele.

A opção era entre os grandes latifundiários, financiados pelo Governo Federal e protegidos pelos militares, e os posseiros, peões semiescravos e índios. Nos seus primeiros dias na região, um fazendeiro lhe disse:

— Padre, logo o senhor será fazendeiro também.

Ele retrucou, de pronto:

— Só perdendo a cabeça ou a fé.

Meses depois, foi convidado pra um almoço na Fazenda Suiá-Missú, maior que o Distrito Federal, de propriedade de uma rica família paulista. Eram 160 convidados, vinte aviões, um fausto banquete — num ambiente socioeconômico que não era de festa, era de guerra pela simples sobrevivência. Foi a conta.

Na África, dez anos antes, Pedro foi implantar o programa “Cursilhos da Cristandade”. Na Guiné, que então ainda era colônia espanhola, ele se recusou a formar grupos que não fossem mistos, de brancos e negros. “Ou é café-com-leite, ou nada”, impôs, e foi atendido.

Sua tomada de partido diante do latifúndio, aqui, era visível em sua fisionomia — magro, pequeno, óculos fundo-de-garrafa. Primeiro, deixou de cumprimentar grandes fazendeiros. Depois, fechava o rosto a eles. E só visitava casas e comunidades pobres da extensa prelazia, que ia do Araguaia ao Xingu. De fazendeiro, não aceitava nem carona.

Por fim, resolveu denunciar. Jornalista, com passagem por vários órgãos da imprensa católica na Espanha, sabia como difundir notícias sobre o que ali se passava. No início de 1970, escreveu um relatório intitulado “Escravidão e Feudalismo no Norte do Mato Grosso”, que enviou a seus superiores, autoridades do governo e entidades civis.

Era um torpedo, um rico e duro diagnóstico da situação social e econômica da região. Mas, a representação do Vaticano no Brasil à época determinou que o documento não fosse mais divulgado. Paciente, Pedro resolveu esperar.

Ele tinha vindo pro Brasil montar uma nova prelazia e esta muito logo teria que ter um bispo. Ele diz que foi indicado por falta de alternativa, porque sua fama de “comunista” já corria longe. Menos de um ano depois, ao sagrar-se bispo, leu o tal documento publicamente. Foi um estrondo.
O Papa Paulo VI tentou tirá-lo do Brasil, mas ele não aceitou. João Paulo II disse dele que era “mais fácil fazer poetas do que bispos”. A equipe da prelazia ampliava sua atuação na educação de base, jornal e boletins da igreja corriam pela região, e nascia a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Pedro seguiu em frente, ajudando os sem-terra (ainda não havia o MST) a ocupar áreas devolutas, a enfrentar pistoleiros. Em 1976, ele e o padre João Bosco Burnier, de outra prelazia, foram ao povoado de Ribeirão Bonito acudir duas mulheres que estavam presas, sendo torturadas pela polícia local.

Três minutos de conversa, e um policial deu um soco, uma coronhada e um tiro no rosto do padre Burnier, que morreu na hora. Consta que o atirador se enganou, porque Burnier “tinha mais jeito de bispo”. A população invadiu a cadeia, libertou as mulheres e pôs fogo em tudo.
Um ano depois, no local, era inaugurada uma igreja, num evento que mobilizou centenas de policiais armados até os dentes – e que foi divulgado no mundo inteiro. Com Pedro à frente de tudo.

E assim sucederam-se casos e mais casos, anos a fio, sem que Casaldáliga mudasse seu rumo, seu jeito, seu estilo franciscano de vida, embora ele seja da congregação Claretiana. A mesma casa da chegada, ampliada pra atender visitantes, mas modesta como sempre, ele manteve até deixar o posto. A primeira geladeira, ele aceitou ganhar quando já tinha mais de 70 anos, porque nunca quis desfrutar de confortos que os vizinhos não pudessem ter.

Desde sempre, sua vida é rezar, trabalhar e escrever, escrever. Em português e em catalão. Mas falar, só em português. Um de seus poemas mais conhecidos é uma homenagem a Che Guevara. E, em cartas, ele tratava Fidel Castro por “você”. Ao final de uma delas, diz que não iria abençoar o líder cubano porque “tenho dois anos a menos que você, e cabe aos mais velhos abençoarem”.
O quadro social e econômico na região de São Félix, como em quase toda a Amazônia, mudou nesse meio século, mas não melhorou – em muitos aspectos, fez foi piorar. Mas, mesmo assim, Pedro acha que é possível “ser menos radical”. E arremata: “Mas não pouco radical”.

Hoje ele viaja menos, tanto no Brasil como ao exterior, mas aceitou ir à Espanha, neste início de fevereiro, onde foi homenageado em comemoração aos 90 anos. Desde 02 de fevereiro de 2005, quando o Papa João Paulo acolheu seu pedido de renúncia, ele não comanda mais a prelazia de São Félix, pra alegria dos ruralistas.

Contudo, ficou na região e recebeu do Vaticano o título de bispo emérito daquela localidade. Sobre sua fama de “comunista”, criada desde quando ele era apenas padre, ironiza dizendo que “verdadeiramente comunista, só Cristo conseguiu ser”.

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