A judicialização da política e o declínio da soberania popular

Às vésperas do julgamento do recurso contra a condenação que o ex-presidente Lula recebeu em primeira instância, a sociedade brasileira talvez ainda não se tenha dado conta da gravidade que este fato representa em termos de ameaça à democracia. Isto porque sendo aparentemente um rito jurídico, esconde a danosa substituição da vida política pelo espaço restrito das decisões judiciais.

A mídia conservadora não tem poupado esforços para consolidar a ideia segundo a qual a redenção da nação passa exclusivamente pelas togas. Desde o início da operação Lava-Jato, principalmente, tem realizado simultaneamente dois movimentos: um deles, é o da demonização e desqualificação da política, tendo, é claro, o cuidado de selecionar manchetes, dando destacada visibilidade àquelas que possam comprometer o campo democrático e popular, enquanto faz vistas grossas a fatos envolvendo agentes políticos alinhados com seus objetivos retrógrados. O outro movimento passa pela ideia de divinização do judiciário, supostamente imune aos descalabros da política.

Esta ideia de um judiciário incorruptível e imparcial tem conquistado corações e mentes, mesmo diante da evidência de fatos demonstrativos de que, pelo menos o quesito “imparcialidade”, não é o ponto forte de alguns representantes deste poder da República.

Não é preciso ser jurista para perceber que esta concepção que coloca o judiciário não só acima dos demais poderes, o que já afronta o artigo 2º da Constituição Federal, mas também acima da sociedade e da política, pode acarretar desdobramentos nefastos na medida em que, entre outras consequências, desmobiliza e fragmenta a vida social, tornando-a refém das decisões judiciais, abrindo assim o caminho para o autoritarismo.

A conhecida frase atribuída a Rui Barbosa, na qual o jurista baiano afirma que “a pior ditadura é a ditadura do poder judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer”, é de uma profunda atualidade. Rui Barbosa sabia que a subsunção da vida política às decisões judiciais é sinal claro de ameaça à democracia, pois retira do povo o protagonismo necessário para que ela – a democracia – exista de fato.

O que temos assistido em todo o processo acusatório de Lula não é a simples perseguição a uma pessoa, o que já seria grave, mas é, principalmente, a tentativa de eliminar, não só uma corrente política, mas “a política” da vida brasileira. Assim, a inviabilização política de Lula e sua criminalização possuem alto sentido simbólico. Lula é um homem da política e tomou decisões políticas que afrontaram o status quo secularmente instalado no Brasil. Mas, é preciso que sua eliminação política seja revestida de legalidade, e que , em hipótese alguma, seja associada a atos arbitrários ou ao autoritarismo; afinal, vivemos em uma democracia! Nada de soluções antiquadas como, por exemplo, a força das armas, da tortura e do banimento. A eliminação política de Lula enquanto símbolo da eliminação da política demanda meios mais sofisticados; sua condenação deve dar-se, primeiramente, no plano da condenação moral, como, de resto, tem sido feito com toda a atividade política, mas também por sua condenação criminal, ainda que sem provas. Para isso, é preciso um judiciário divinizado, acima de tudo e de todos, instância absoluta e inquestionável, capaz de equalizar e de concentrar em si a lei, o direito e a justiça.

O golpe perpetrado contra a democracia brasileira em abril de 2016 foi emblemático nesse sentido. A participação direta de alguns membros do judiciário, que passaram a ser considerados celebridades e extrapolando, inclusive, limites constitucionais, serviu para legitimar, perante a opinião pública, a deposição de uma governante democrática e constitucionalmente eleita e sem que tivesse incorrido em crime de responsabilidade, dando-lhe estatuto de um ato legal, justo e supostamente realizado dentro dos ditames do estado de direito. Neste caso como no julgamento do próximo dia 24 de janeiro, assistiremos a um julgamento político sob a forma de rito jurídico e que, como tal, será alardeado como neutro, imparcial. Um rito onde não haverá espaço para a soberania popular, uma vez que esta somente se efetiva no espaço da política; um espaço que historicamente tem sido alvo das elites em suas estratégias para que o povo dele se mantenha afastado.

Para os donos do dinheiro, não basta possuir o monopólio econômico, é preciso garantir também o monopólio dos espaços de decisão, o espaço da política. A democracia brasileira, forjada nas lutas populares, soube enfrentar os aparatos repressivos que se sucederam em nossa história e que sempre tiveram por objetivo garantir para as elites o monopólio da política para, assim, perpetuarem seu poderio econômico. A judicialização da política é apenas mais uma dessas estratégias. Resta saber que forças sociais e políticas a democracia brasileira irá mobilizar para se contrapor a este processo e fazer com que o poder judiciário seja aquilo que deve ser: um dos poderes fundamentais para a democracia e que, por isso mesmo, jamais deverá a ela se sobrepor.

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