Uso medicinal de derivados da maconha – ou nem tudo que reluz é ouro

Na utilização das substâncias derivadas de maconha para o tratamento de doenças, a Anvisa tem escolhido criar uma “política” que beneficia a indústria farmacêutica, não a saúde das pessoas que mais precisam de uma erva natural.

Uma das discussões que vem tomando o cenário do direito à saúde no momento diz respeito às terapias que utilizam substâncias derivadas da maconha (Cannabis sativa), as chamadas canabinoides. Refiro-me especificamente ao CBD, o canabidiol, e ao THC, o tetra-hidrocanabinol.

O debate veio à tona sobretudo pelas notícias veiculadas na imprensa envolvendo duas situações distintas, mas com elementos que se comunicam: de um lado, a 2a Vara Federal da Seção Judiciária da Paraíba, em 20 de novembro de 2017, confirmou entendimento firmado em liminar e decidiu que a associação Cannabis Esperança, em João Pessoa, poderia manter o cultivo e a manipulação da maconha para uso medicinal. Essa decisão englobou os 151 pacientes a ela associados e indicados nos autos do processo.

De outro lado, a repercussão gerada pela emissão da Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa RDC n. 17, de 6 de maio de 2015, alterada pela RDC 66, de 18 de março de 2016, que estabelece os critérios e o procedimento para a importação de produto à base de canabidiol por pessoa física para tratamento de saúde. Essas duas notícias poderiam mostrar o início de uma nova forma de lidar com a maconha no mundo e, mais especificamente, no Brasil, pelo reconhecimento de que tanto o canabidiol quanto o THC podem ser usados de forma medicinal para o tratamento de inúmeros males que atormentam milhares de pessoas mundo afora.

Em face da possibilidade de utilização de compostos derivados da maconha para cuidar da saúde das pessoas, resta a pergunta: por que a guerra às drogas, mais especificamente à Cannabis? A decisão da justiça brasileira e a regulamentação da Anvisa poderiam apontar novos caminhos?

As aparências enganam. Muito embora pareça ser bem intencionada a decisão da Justiça Federal da Paraíba, ao reconhecer a eficácia do tratamento à base de canabinoides e o direito à saúde constitucionalmente assegurado a todas e todos como forma de conferir a tutela pleiteada pela associação, o resultado final da decisão abre um precedente muito perigoso: o de criar uma reserva de mercado para a associação e deixar aquelas pessoas doentes, muitas vezes crianças com epilepsia e outros males, à mercê da exploração exclusiva do plantio e manuseio da Cannabis pela referida pessoa jurídica.

Se apenas a associação tem o poder de explorar aquela cadeia produtiva para fins de tratamento de saúde, a decisão, na prática, estabeleceu o monopólio de uma atividade econômica para uma única associação no Brasil. Existe um custo para dar conta de toda a cadeia produtiva, que vai do plantio à extração, por exemplo, do óleo de cânhamo. E a Justiça, bem-intencionada na luta pela efetivação do princípio constitucional do direito à saúde, deu a chave do cofre e o selo de respeitabilidade que uma ordem judicial em tese traz em seu bojo para que situações de exploração econômica venham a acontecer em detrimento do direito à saúde que a tal decisão busca efetivar.

No afã de resolver o problema, parece que a Justiça criou outro muito maior, com consequências que podem vir a ser drásticas para a saúde e a integridade física e psíquica das pessoas envolvidas.

Quanto aos procedimentos da Anvisa, a tônica do problema está na possibilidade de importação, em caráter excepcional, de produto à base de canabidiol em associação com outros canabinoides. Analisando o teor da Resolução, vemos que “produto à base de canabidiol”, nos termos da RDC 17 da Anvisa, é, pela transcrição do inciso IX do seu art. 1o, um “produto industrializado tecnicamente elaborado, constante do anexo I desta Resolução, que possua em sua formulação o Canabidiol em associação com outros canabinoides, dentre eles o THC”.

Como se pode ver pela transcrição acima, o caminho escolhido pela Anvisa foi o que beneficia a indústria, quando vivemos num país em que se plantando tudo dá – inclusive maconha. Vemos aqui uma faceta muito peculiar da “guerra às drogas”: a manutenção da maconha como uma planta ilícita, pero no mucho: uma mãe pobre e miserável que busca cuidar da saúde do filho não pode plantar um pé de maconha em casa, porque ela seria tida como uma traficante, uma criminosa. O mesmo composto químico existente nesse vegetal, quando manipulado ou produzido tecnicamente pela indústria, ele perde essa condição e passa a ser desejável, patenteável e importável para aqueles que podem arcar com os custos, inclusive tributários, dessa operação.

Fica claro que já existe o reconhecimento técnico de que a Cannabis pode ser usada para o bem-estar das pessoas, mas as notícias que sopram por aqui só demonstram 1) a reserva de mercado de quem pode lidar com a cadeia produtiva dessa commodity; e 2) a escolha da Anvisa em criar uma “política” que beneficia a indústria farmacêutica, não a saúde das pessoas que mais precisam de uma erva natural.

De um lado e de outro, a falta de informação e o moralismo ainda reinante sobre a maconha criam no nosso imaginário uma associação do “maconheiro” com a escória da sociedade. Enquanto isso, os negócios vão de vento em popa, e as pesquisas podem mostrar novas formas de utilização da Cannabis para fins medicinais a serem exploradas pelo mercado, sem levar em consideração nas regulamentações da Anvisa a possibilidade de extração artesanal e caseira do óleo de cânhamo, dentre outras formas.

É preciso abrir a cabeça para falar de um tema tão espinhoso, ainda mais para não sermos seduzidos pelo canto que parece ser emancipador em relação àqueles que precisam das substâncias canabinoides para que tenham qualidade de vida. Há muitas variáveis envolvidas nesse jogo de interesses, inclusive o desejo daqueles que pretendem explorar o sofrimento das pessoas que padecem diariamente com dores físicas e emocionais e que, para isso, jamais hesitariam em pegar carona no importante discurso antiproibicionista e de alerta contra a guerra às drogas.

O objetivo aqui não é desqualificar a dor das pessoas, muito menos diminuir a luta política do antiproibicionismo, mas evitar as visões maniqueístas de mundo que não raro utilizam-se dos argumentos contrários e assimétricos para, por meio da manipulação desse tipo de raciocínio, chegar a lugares bem diferentes daqueles almejados por quem quer se ver livre de uma doença ou lutar contra a “guerra às drogas”.

Em síntese: se não tivermos cuidado, o antiproibicionismo, dependendo de como ele seja conduzido, pode ser o próximo passo para a realização dos mais profundos desejos da indústria, ao criar uma reserva de mercado e uma dinâmica mundial de importações de industrializados derivados da Cannabis, deixando de lado a possibilidade de uma política pública voltada para o plantio e produção artesanal e caseiro da erva.

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