As falsas promessas do (neo) liberalismo

O “fim da história” teria chegado com o fim da União Soviética, escreveu Francis Fukuyama em 1989, imaginando a derrota final dos oponentes do capitalismo. Para ele, as ideologias, em seu enfrentamento dialético teriam atingido sua síntese final na universalização da "democracia liberal". 

Ilustração: Tainan Rocha

Depois, o próprio Fukuyama faria uma revisão autocrítica da tese mas, de todo modo, essa é uma ideia que deitou raízes e até hoje alimenta o discurso triunfalista do neoliberalismo.

O teórico norte-americano afirmava a existência de uma consciência a-histórica, que moldaria o mundo material e não seria moldada por ele, como querem os materialistas. A vitória do liberalismo como forma última de expressão e governo humano teria se dado justamente nesse plano ideal da consciência, dando forma ao mundo material paulatinamente. Esse novo mundo surgido do último grande confronto ideológico seria governado por um “Estado Homogêneo Universal”. As mercadorias circulariam livremente, as pessoas buscariam a felicidade através da satisfação de suas necessidades (vistas pelo prisma do consumo, como cabe a um bom liberal) e a paz universal seria enfim uma realidade.

Os países não teriam necessidade de se armar e as relações internacionais, esvaziadas de assunto, estariam confinadas às páginas de economia e não mais às de política e estratégia. Conflitos bélicos ocorreriam sim, por mais algum tempo, mas nunca entre países da pós-história e sempre contra o que restava de "autocracias" no planeta. O capitalismo e o liberalismo, vitoriosos no plano da consciência, paulatinamente se imporiam a todos os povos, ainda que pelo uso histórico da força. Em consequência, ascenderia um mundo de liberdades, livre comércio e paz universal, posto que, deduzia-se, não haveria mais razões para a guerra. Essa utopia liberal não tardou a ser desmentida pela réplica dos fatos. A expansão das liberdades e o fim das guerras foram e são, como tantas outras, promessas não cumpridas pelo liberalismo

A voz de Fukuyama não é isolada no plano da discussão teórica, muito embora a conjuntura da publicação de seu primeiro artigo (euforia com o fim da URSS e ascensão dos Estados Unidos à condição de única superpotência do planeta, pelo menos em termos militares) tenha atribuído, com certo sensacionalismo, um ar de novidade às ideias expostas. O liberalismo, desde suas obras fundadoras, promete ao mundo a paz universal. Adam Smith e David Ricardo anunciaram o fim das guerras em virtude do cada vez mais elevado volume de comércio internacional.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, defendeu-se a tese de que o conflito teve como uma de suas causas primcipais a existência de barreiras ao livre comércio internacional. Logo, a construção da paz passaria necessariamente pelo fim desses obstáculos. Veio dessa concepção a estrutura institucional que moldou o comércio internacional na segunda metade do século XX (GATT, FMI, BIRD, dentre outros). O resultado foi a abertura de mercados para o centro mais desenvolvido enquanto entre os países da periferia essa abordagem "ideologizada" (essa sim!) foi impeditivo do desenvolvimento. Tudo em nome de uma paz e prosperidade que viriam.

Hoje, quando 20 anos já se passaram desde a publicação do artigo de Fukuyama, podemos nosindagar se a história realmente chegou ao fim e se o liberalismo cumpriu suas promessas. Principalmente agora, quando os neoliberais se reapresentam como os portadores das chaves do futuro. E, ao contrário das previsões de Fukuyama, o que se seguiu ao fim da URSS não foi o primado da paz, mas uma ainda mais violenta expansão do capital. O Iraque, o Afeganistão, a Líbia e a Síria, para citar apenas alguns dos exemplos, evidenciaram tanto a farsa dessa promessa de paz como pouco apreço dos que se apreentavam como líderes de um “mundo livre” pelas normas das Nações Unidas. De fato, não lhes interessa uma democracia universal, entre os estados, com o respeito ao princípio da livre determinação dos povos.

A ausência da URSS permitiu que os EUA e seus aliados atuassem em desrespeito à própria legalidade internacional que eles ajudaram a instituir. Normas foram violadas e guerras ilegais (posto que realizadas sem a aprovação regular pelo Conselho de Segurança das Nacões Unidas) ocorreram e ocorrem sem qualquer constrangimento. O mundo de paz prometido deu lugar à um novo ciclo de agressões imperiais contra os povos do mundo.

É verdade que com a ONU ocorreu o reconhecimento de uma instituição e de uma legislação que, de alguma forma, está acima dos estados nacionais. Porém, quando os EUA invadiram o Iraque a despeito de veto interposto pelo Conselho de Segurança e adotaram a doutrina da guerra preventiva ficou patente que não seria esse aparato normativo que os conteria. Afinal, por maior que seja a legitimidade dos estatutos internacionais (entre eles, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, constantemente desrespeitada por potências "democráticas" e "liberais"), sozinha ela não impede bombardeios e nem é capaz de punir condutas proibidas. A força sem o direito é ilegítima, mas o direito sem a força é nulo, ineficaz, aprendemos com Norberto Bobbio.

O proclamado anseio liberal por um mundo pacífico, com oportunidades para todos, revelou-se a velha e conhecida imposição dos intersses do mais forte. A lição da realidade nos últimos anos foi bem diferente da imaginada pela promessa liberal, revelada em toda sua hipocrisia. Um império é sempre um império, por mais democrático que consiga ser em seus processos internos de tomada de decisões. Por isso, a “democracia liberal” dos EUA apóia de bom grado a monarquia saudita – responsável por inúmeras violações dos direitos humanos resguardados por celebrados tratados internacionais – para garantir uma base segura no coração do Oriente Médio. Por isso potências da União Europeia bombardearam a Líbia em nome da garantia de direitos que foram exterminados pelo caos deixado no rastro da intervenção.

Nem a história chegou a seu fim e nem o liberalismo mostrou-se capaz de cumprir suas promessas, todas falsas. O mundo que surgiu no esteio do fim da União Soviética é inseguro, conflitivo, extremamente belicoso e obscurecido pelo espectro do ressurgimento de uma extrema direita que muitos julgavam acabada. Por isso, hoje, quando os neoliberalismo se apresenta novamente como o portador de um projeto de desenvolvimento e garantia de liberdades é preciso não perder de vista sua história de ilusionismo e falsas promessas. Seja quando propõe “flexibilizações” de direitos, privatizações e diminuição da atuação estatal, seja quando afirma a natureza pacífica das potências em uma ambiente de “liberdade de comércio”, o liberalismo (velho ou novo) mente. A despeito do triunfalismo da direita, a história e a luta continuam.

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