Matando Cancellier de novo

Uma das desonestidades intelectuais a que mais recorrem os trustes do jornalismo consiste em desviar o foco de um debate para um ponto que não está em discussão, de modo a ocultar aquilo que os incomoda. Recentemente, em 22 de dezembro do ano passado, a Folha de São Paulo proclamou em grande título: “Relatos reforçam suspeita da PF sobre reitor da UFSC”.

O jornal da famiglia Frias tem longa história de colaboração com a polícia de regimes de exceção: nos anos 1970, fornecia furgões para os torturadores do DOI-CODI. Não surpreende que queira justificar a ação da Polícia Federal, que três meses antes tinha destroçado psicologicamente o reitor Luiz Carlos Cancellier da UFSC, acuando-o ao suicídio. A Folha não traz em seus “relatos” nenhum fato novo suscetível de modificar o que já se sabia a respeito das “suspeitas”. Nada que invalide sequer uma vírgula de “O assassinato do reitor”, o protesto indignado, mas objetivo, de Roberto Amaral publicado em Carta Capital de 7/12/2017.

Pelo menos quatro sinistros personagens puseram em funcionamento a máquina judiciária que triturou o reitor da UFSC. Um desafeto, o ouvidor Rodolfo Hickel do Prado (1) acusou-o de “obstruir” investigações na UFSC visando a apurar supostas irregularidades num programa de ensino à distância ocorridas antes de seu mandato de reitor. O ouvidor desafeto considerou “obstrução” da justiça o mero cumprimento, por parte do reitor, de seu estrito dever de ofício: solicitar vista do processo, para conhecimento. A delegada Érika Mialik Marena, ex-titular da Lava Jato em Curitiba (2), prendeu Cancellier em 14 de setembro passado, com a autorização da juíza federal Juliana Cassol (3), baseada em parecer favorável do procurador André Bartuol, do Ministério Público Federal (4).

A fragilidade do pretexto para a prisão não inibiu o exibicionismo mediático da Polícia Federal: “115 policiais foram mobilizados para prender Cancellier, um cidadão desarmado, sem asseclas ou guarda costas”. A sádica crueldade da violência policial e judiciária não poupou ao reitor nenhuma humilhação. Depois de depor na PF, ele foi levado, ao arrepio da lei, para a penitenciária de Florianópolis, onde, “tratado como marginal perigoso, teve os pés acorrentados, as mãos algemadas, e nu, submetido a revista íntima (para dizê-lo sem rodeios: teve seu ânus vasculhado por policiais em busca de saquinhos de droga), vestiu o uniforme de presidiário e foi por fim jogado em uma enxovia na ala de segurança máxima”. Roberto Amaral, de quem tiramos as frases entre aspas, compara o papel do ouvidor de plantão da UFSC ao “dos coronéis de ‘segurança’ instalados nas reitorias das universidades federais, depois do golpe militar”.

Proibido de frequentar a Universidade, deprimido e desesperado, Cancellier só encontrou um modo de dizer não a seus algozes: jogou-se do sétimo andar de um shopping center de Florianópolis. Não tinha completado sessenta anos. O rolo compressor da lava jato esmagava mais um “suspeito”. A vaga de indignação que percorreu os ambientes esclarecidos do país não impressionou os inquisidores da máquina judiciária. O juiz Marcelo Volato de Souza, aceitando o parecer do promotor Andrey Cunha Amorim, mandou encerrar o inquérito que apuraria a morte de Cancellier, garantindo acintosa impunidade aos que haviam abusado cruelmente de seus poderes para aniquilar uma vida. O governo golpista foi mais longe. O delegado Fernando Segóvia, colocado por Temer na direção da Polícia Federal por recomendação de José Sarney e de Romero Jucá, cujas folhas corridas dispensam comentários, resolveu promover a delegada Mialik Marena. Extremamente preocupante é o apoio que estes atos e medidas, próprias a um Estado de exceção jurídico-policial, receberam por parte de associações de magistrados, procuradores e delegados. Não só deles, entretanto. Engrossando o coro dos coxinhas que uivavam aplausos aos implacáveis cruzados da lava jato, destacou-se pelo radicalismo punitivo o comunicado de um grupelho de extrema “esquerda”: “Fora Cancellier! Novas eleições sob novas regras já! Cadeia para todos os corruptos e o confisco de seus bens!” Assinado: PSTU Floripa.

Ao longo da história política e cultural do Brasil, as cruzadas moralistas deixaram intacta a corrupção, mas foram muito úteis para golpear as forças populares. Até agora, as de consequências historicamente mais deletérias foram as promovidas por Carlos Lacerda (segundo a insuperável definição de Roberto Amaral, um Bolsonaro alfabetizado). Em 1954, ele foi grande protagonista da campanha de calúnias que acuou Getúlio Vargas ao suicídio. Em 1964, esteve entre os mais raivosos promotores do golpe militar. Os golpistas de então anunciavam que iriam pôr fim “à subversão e à corrupção”, mas cumpriram só metade da promessa: dizimaram a esquerda clandestina com tortura sistemática e assassinatos seletivos. Deixaram, porém a safadeza financeira correr solta: Paulo Maluf, J. Marin, Reinaldo de Barros e caterva são apenas alguns dos mais notórios corruptos que prosperaram à sombra malsã da ditadura.

A máscara da moralidade permitiu a dois aventureiros a serviço da direita usar seus dotes de camelô para chegar à Presidência. Em 1960, com a histriônica vassoura da honestidade em punho, Jânio Quadros derrotou o candidato nacional democrático Henrique Lott. Em 1989, o “caçador de marajás” Fernando Collor, mistificando rasteiramente o eleitorado com o descarado apoio da Rede Globo, derrotou Lula no segundo turno. Os dois prestidigitadores não tardaram em abandonar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos. Tinham servido apenas para barrar o caminho dos candidatos da esquerda.

A frente reacionária que articulou o golpe parlamentar de 2016 não dispõe de “homens da vassoura” ou “caçadores de marajás” em condições de enfrentar Lula no voto em 2018. Dispõe, porém do rolo compressor policial e judiciário. A escandalosa celeridade com que foi marcado o julgamento de Lula em 2ª instância (após sua mui previsível condenação em 1ª instância pelo sinistro Moro), confirma o “vale tudo” da direita para impedir Lula de ser candidato, já que se for, ganha.

O suicídio de Cancellier deixou indelével mancha de sangue na trilha da Lava Jato. Daí o afã do cartel mediático em sujar sua imagem póstuma. Às vésperas do segundo julgamento de Lula, é imperativo para a reação neoliberal manter intocado o prestígio da cruzada moralista. Com o benefício suplementar, para os que estão empenhados na privatização do ensino superior, de desmoralizar uma universidade federal.

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