Acordo com União Europeia é nocivo para o Mercosul

No primeiro final de semana deste mês, paralelamente à Cúpula da Organização Mundial do Comércio (OMC) realizada em Buenos Aires, foram retomadas as tratativas para a assinatura de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Sobre a mesa há propostas que envolvem a derrubada de tarifas para bens, serviços, investimentos e até compras governamentais.

Ilustração: Tainan Rocha

No limite, o que se busca é o fim de barreiras para importações de um bloco a outro. A discordância quanto ao que será de fato liberado e em qual proporção é o que tem emperrado o avanço para um consenso. Já fazem mais de 20 anos que negociações nesse sentido tiveram início e, a rigor, sempre esbarraram no descompasso entre o que a União Europeia (UE) quer e o que oferece em troca.As rodadas de discussão em Buenos Aires não apresentaram nenhuma mudança nesse padrão, mas surgiu um elemento novo:a disposição dos governos ultraliberais de Temer e Macri para assinar qualquer coisa e a qualquer custo.

Embora tanto o Itamaraty como o Palácio San Martín tenham se declarado na expectativa de anunciar um acordo ainda neste mês – de preferência antes da cúpula do Mercosul a ser

realizada em Brasília – manteve-se o cenário de indefinição. De novo, devido a pouca disposição europeia. Felizmente! Para a sorte do Mercosul, os governos de Brasil e Argentina não conseguiram empurrar o bloco para o precipício de um acordo nocivo que coloca em risco a capacidade de planejamento estratégico da integração regional, tal qual a concebem os defensores de uma inserção soberana de nossos países no mundo.O que explica a pressa dos governos de Brasil e Argentina? Evidentemente, buscam garantir ganhos de médio prazo a determinados setores das elites econômicas que sustentam os dão sustentação política, mas não se trata só disso. Há também um empenho para desarticular toda construção de um projeto de integração regional que teve como foco a cidadania e não apenas os mercados.

O ciclo dos governos progressistas na América Latina, que marcou a primeira década do século, trouxe consigo um novo modelo de integração, talvez ainda não suficientemente teorizado. Quem abrir um manual de direito ou economia da integração regional verá que ela é definida como uma exceção consentida à regra geral do livre-comércio sempre que implique em maior liberalização, tal qual estabelecido pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês). Então, trataria-se de um instrumento próprio do comércio internacional, estabelecido no contexto do pós Segunda Guerra Mundial. Seu objetivo seria ampliar as trocas comerciais no interior de uma relação bilateral ou bloco de países objetivando, com isso, uma futura ampliação da liberdade de comércio em escala global.

Para nós, latino-americanos, essa visão é estreita logo de saída. Ela desconsidera a história maior dos projetos de união do continente, cujos objetivos são muito mais amplos. Desde o século XIX, as iniciativas para o que definimos como “integração” eram apresentadas e debatidos como instrumentos de garantia da independência e autonomia. Contemplavam, para além das relações comerciais, propostas de unidade política, cultural e até mesmo militar.

Mesmo tendo em conta os termos do GATT, o novo modelo partiu dessa história para propor um conceito de integração que vaialém da circulação de mercadorias em condições especiais. Sem diminuir a evidente importância das relações de comércio,foi afirmada a necessidade de uma integração na qual a dimensão econômica (que já vislumbra muito mais que os limites rasos dos ganhos imediatos de elites empresariais) deve ser considerada em conjunto com a cooperação estreita nos âmbitos político, social, cultural, ambiental, enfim, dos povos da região. Essa integração praticada pelos governos progressistas já demonstrou na prática sua capacidade de fomentar o desenvolvimento e projetar nossos países em condições melhoresem um mundo no qual a globalização ampliou assimetrias, excluiu povos e condenoupaíses a um colonialismo de novo tipo, devidamente camuflado. É exatamente esse projeto que o acordo em negociação com a União Europeia coloca em risco. E é exatamente por isso que Temer e Macri tem pressa.

O que o nós teríamos a ganhar? Os defensores do acordo alegam que ele traria investimentos europeus, além de ampliar o mercado para as exportações, que receberiam tratamento especial em tarifas e em barreiras não tarifárias ao ingressar na UE. Porém, quando se desce às minúcias das propostas, o mundo não é tão encantado assim.Buscando proteger seus produtores, a Europa não abriria totalmente suas portas aos produtos agropecuários do Mercosul. Para a carne bovina, um dos tópicos mais importantespara o lado sul-americano da mesa, a UE ofereceu uma cota de 70 mil toneladas em importação, o que equivale a apenas 1% de seu consumo anual. Outra questão relevante é a má vontade da UE para oferecer cotas de importação consideráveis para o etanol.

O que a Europa deseja? A eliminação das barreiras a seus produtos industriais e serviços, a inclusão da propriedade intelectual na pauta e, além disso, a possibilidade de suas empresas participarem das licitações para compras governamentais nos países do Mercosul.Portanto, por um lado a UE quer liberalizar toda a pauta industrial enquanto, por outro,não admitefazer o mesmo coma agropecuária.Em outras palavras, ela cuida de seus próprios interesses. Os ultraliberais, agora ocupando os governos dos maiores países do bloco sul-americano, passaram anos acusando os governos de esquerda de entravarem esse acordo por “razões ideológicas” quando a verdade era muito mais simples: mesmo quando vistas sob o prisma exclusivamente dos ganhos comerciais, as condições são extremamente desfavoráveis para o Mercosul.

A própria UE não se mostrou suficientemente interessada em um acordo que, pelo menos, favorecesse um pouco mais o outro lado da mesa. Politicamente, ela está diante de uma contradição difícil de ser solucionada. Por um lado, precisa ampliar os mercados para sua indústria e, de alguma forma, reanimar o comércio atlântico, cada vez mais secundário diante do deslocamento do eixo econômico do mundo para a Ásia. Por outro lado, as ameaças de fragmentação do bloco não lhe dão firmeza política para derrubar as proteções que oferece a seus temerosos produtores rurais nacionais, que perderiam muito ao concorrer com os do Mercosul. Esse impasse interno da UE ficou evidente no último dia 13, quando os negociadores sul-americanos cederam em pontos centrais para fechar um acordo de qualquer maneira e, mesmo assim, receberam apenas evasivas. Parece que a culpa não era de Lula, Chávez, Néstor e Cristina…

Um acordo com a UE nas condições atualmente colocadas não passa de uma nova ALCA, com consequências igualmente nocivas.Está em risco o desenvolvimento dos países do Mercosul: derrubar as barreiras para os produtos da indústria europeia é abrir as portas para uma maiordesindustrialização de nossos países e, consequentemente, para a piora das condições do mercado de trabalho.Como se fosse pouco, nosso bloco perderia a capacidade de garantir condições favoráveis exclusivas aos seus membros. Na prática, isso significa que a união aduaneira hoje existente (mesmo “imperfeita”) deixaria de existir. Vale a pena sacrificar nosso futuro enquanto povos soberanos em troca de ganhos ínfimos para o setor agropecuário? A resposta evidente é não, mas Temer e Macri procuram a todo custo fechar um acordo nocivo para, mais uma vez, golpear o projeto de integração que serve aos povos, não aos mercados.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor