Desconstruindo Pabllo

Como definir gosto ignorando os elementos que justificam o seu acesso a cada coisa?

Seja com relação à comida, a lugares e objetos ou, claro, à música, a maneira como somos expostos ao conteúdo que compõe nosso repertório pessoal influencia diretamente na forma como cada um de nós se relaciona com estas informações. Ou seja, gostar de Nutella, de um filme ou daquela banda legal pode ter vínculo direto com o momento daquele primeiro contato, com quem te mostrou, ou simplesmente com o hype, a modinha de ocasião. Mas nem sempre é assim.

Neste primeiro texto da coluna Música Quente, vamos exercitar esta percepção, tentando entender a pequena obra e o imenso impacto da grande revelação da musica brasileira de 2017, a maranhense Pabllo Vittar. Não podemos ignorar os elementos que formam seu trabalho ou o universo em que tudo isso está envolvido. Nem deixar que qualquer preconceito ou desconhecimento nos impeça de compreender um fenômeno/artista desse porte.

Para além da música, é fundamental começar falando que Pabllo é um jovem gay que atua montado como uma drag queen. Drags são personagens que transitam entre o masculino e o feminino, montados em figurinos com adereços chamativos, maquiagens poderosas e que, muito além da performance, trazem uma atitude política. Provocam o patriarcado, obrigam a pensar sobre questões ligadas à identidade de gênero e orientação sexual. O corpo de uma drag é um corpo político.

Uma outro elemento relacionado à cultura drag são os shows de dublagem, nos quais, em sua esmagadora maioria, são encenadas performances de divas do pop. E é bem neste ponto em que começam as diferenças. Pabllo Vittar é uma drag que canta. Naturalmente, muitas cantam, mas ter voz, se colocar como protagonista, e fazer sucesso incomoda muito a quem preferia que ele ou ela não existisse.

Com produção de Rodrigo Gorky, ex-Bonde do Rolê e também produtor da BandaUó, o primeiro álbum da Pabllo Vittar, chamado “Vai Passar Mal”, foi lançado em janeiro deste ano. O trabalho é cheio de ótimas referências da música brasileira, que vão desde a música popular do vaneirão que dá base ao sertanejo moderno, passando por arranjos de metais do forró da turma de Aviões e Safadão, colocados em cima de beats eletrônicos de twerk, rasteirinha, funk carioca e arrocha.

Tudo isso feito com enorme habilidade técnica, para soar no mesmíssimo nível das tais divas internacionais do pop. Esse suporte técnico e artístico está à altura da figura extraordinariamente necessária que Pabllo Vittar é para o nosso momento histórico, em tempos de imensa crise de representativa e de ataques a direitos básicos.

Com esse seu primeiro disco e com participação em trabalhos de outros artistas, Vittar conseguiu ocupar os primeiros lugares das mais importantes plataformas de streaming no Brasil, como Deezer e Spotify, durante boa parte do ano de 2017. Duas de suas músicas chegaram inclusive ao top5 do Spotify, após sua aparição avassaladora no Rock in Rio.

No carnaval de 2017, Pabllo apareceu com “Todo Dia”, cantada ao lado de Rico Dalassam, um dos primeiros rappers brasileiros assumidamente gay, e fez um hit de verão com o refrão “Não espero o carnaval chegar pra ser vadia, sou todo dia, sou todo dia”, entonado a plenos pulmões por homens e mulheres, gays e héteros, de Norte a Sul do Brasil. Mas foi “KO” que posicionou a música de Pabllo como algo pop e revolucionário.

A música é montada em cima de uma célula rítmica de vaneirão, ritmo do Centro-Oeste e Sul do Brasil, com uma cadência bem próxima do contratempo do caribenho reggaeton, que por sua vez influencia muito o novo forró eletrônico cearense e o sertanejo universitário.

O hit usa beats eletrônicos da clássica bateria Roland 808, tem em sua introdução uma clara citação às viradas do baterista Riquelme, do Aviões do Forró, e um potente riff de metais, com timbragem que lembra tanto o forró de Safadão quanto sucessos da colombiana Shakira, tem ainda na estrutura melódica destes metais um flerte com os riffs dos tecladinhos do eletromelody, vertente mais pesada e progressiva do tecnobrega paraense.

Há ainda loops de reggaeton, que se alternam com caixas típicas do twerk e do trap. Tudo isso sendo uma cama para essa letra que é o suprassumo do pop, falando das dores de um amor, se referindo a momento juntos e descrevendo o sentimento, coisa que qualquer humano ouvindo ou lendo se identifica.

Uma vez entendendo o contexto em que está inserida a figura de Pabllo Vittar, fica mais possível perceber que não se trata de gostar ou não gostar de sua música. Temos enfim uma diva de repercussão internacional, que canta música pop e atinge as mais diversas camadas da sociedade, independente de orientação sexual. Uma gay de origem periférica consciente de seu corpo político e da função social da repercussão de sua música, queiram ou não queiram os juízes do Facebook.

Conheça um pouco mais de Eletromelody: 

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