CUT-24 anos: os atropelos de Vicentinho

Mal os trabalhadores haviam saído de um duro enfrentamento com o totalitarismo neoliberal, ocorrido durante a greve dos petroleiros no início de 1995, o presidente da CUT, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, assumiu o compromisso de defende

Quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu a Presidência da República, era evidente que uma das bases de sustentação da sua gestão seria a repressão ao movimento sindical. A incompatibilidade da liberdade de organização dos trabalhadores com o projeto neoliberal havia sido demonstrada no início dos anos 80 quando o governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de vôo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que os trabalhadores retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.


 


O totalitarismo neoliberal também mostrara a face na Inglaterra quando a primeira-ministra Margareth Thatcher enfrentou com mão de ferro as greves do mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pela política neoliberal, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário inglês — responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias — especialmente as mulheres — e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.


 


FHC segue os exemplos de Reagan e Thatcher


 


No Brasil, os petroleiros sentiram o gosto de chumbo, tão comum aos trabalhadores durante a ditadura, com a ocupação militar das refinarias pelo Exército durante a greve da categoria já no início de 1995. Em todo o país, o movimento sindical, chocado, se organizou para prestar solidariedade às vítimas da truculência neoliberal. Os petroleiros lutavam para receber um cheque emitido pelo governo, que o novo presidente da República, arbitrariamente, tornara sem fundo. Era um protocolo assinado pela direção da Petrobras e a Federação Única dos Petroleiros (FUP), com o aval do ex-presidente Itamar Franco, sobre questões trabalhistas.


 


O calote de FHC levou a categoria à greve. Julgada “abusiva” pelo TST, os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. Os petroleiros ficaram entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco da repressão. Ficaram com a segunda opção e receberam a solidariedade de todos os que conheciam a verdade dos fatos e defendiam uma atitude honesta diante dos acordos assinados entre as partes. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias. Mas o governo não cedeu.


 


A revista Veja elogiou a tática usada por FHC para “vencer” os petroleiros. “O governo mostrou firmeza, coerência e até competência para acabar com a greve. Brasília montou um esquema inédito de resistência. Em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir grevistas nas principais refinarias”, disse a publicação. As importações custaram à Petrobras 700 milhões de dólares. Tudo isso gastando 20 milhões de reais por dia, quando o cumprimento do acordo com os petroleiros representava 14 milhões de reais.


 


O circo da “grande imprensa”


 


O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria aqueles que divergiam programaticamente de seu governo. Ou seja: os trabalhadores. Todo o esquema, segundo a revista Veja, se explicava pelo objetivo político de FHC: vencer a CUT de maneira acachapante, a única oposição organizada ao governo. “Para um governo que pretende acabar com a indexação dos salários, extinguir privilégios do funcionalismo público e mexer nas aposentadorias, derrotar o setor mais forte do sindicalismo é uma condição quase obrigatória”, escreveu a revista.


 


A “grande imprensa”, mais uma vez, armou seu circo. Para difamar a greve, chegaram ao ponto de dizer que criancinhas estavam passando fome porque, com a falta de gás de cozinha, as mães não podiam esquentar mamadeiras. Mas na verdade eles estavam se lixando para isso. Nas cabeças dos “intelectuais” do neoliberalismo, que a “grande imprensa” chama de “coroadas”, o desabastecimento era apenas “um dado da questão” que o “mercado” resolveria. Logo a quebra do monopólio da Petrobras seria aprovada no Câmara dos Deputados.


 


A direita tripudiava sobre o resultado da greve. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho língua-presa (eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo).” Outro conhecido “comentarista” da Rede Globo de Televisão, Alexandre Garcia, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias. 


 


Vicentinho cai na cilada neoliberal


 


Em seu primeiro ano de governo, o presidente da República indicou claramente o rumo do seu mandato. Mas nem todos entenderam aquela conjuntura e fizeram concessões descabidas quando FHC tentou diminuir a resistência dos trabalhadores acenando aos sindicalistas com um “diálogo” sobre seu programa de governo. O ponto principal, naquele momento, era a “reforma” da Previdência. A tática era a de criar uma aparência de debate para impor a agenda neoliberal. E o presidente da CUT caiu na cilada.


 


A proposta do governo implicava em perdas certas e imediatas para os trabalhadores. Em troca, havia a promessa de benefícios incertos e difusos para o “conjunto da sociedade” no futuro. A primeira rodada de “negociações” aconteceu em 11 de janeiro de 1996. A principal divergência foi a proposta de substituição da aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição. A princípio, entre as centrais sindicais (CUT, CGT e Força Sindical) apenas a Força Sindical aceitou a proposta governista.


 


Mas no decorrer do processo de “negociações” Vicentinho comprometeu-se a defender os termos do acordo na direção nacional da CUT — inclusive a aposentadoria por tempo de contribuição. Apenas quatro dias após o início das ''negociações'', os presidentes das três centrais sindicais se comprometeram, perante os ministros Paulo Paiva (Trabalho) e Reinhold Stephanes (Previdência), a formalizar o acordo em cerimônia com a presença do presidente da República. A atitude de Vicentinho desencadeou um intenso debate na CUT e nos partidos de oposição — inclusive no PT.


 


Pedido de renúncia de Vicentinho


 


Os termos previstos no acordo — substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público — foram duramente criticados até por setores da Articulação Sindical. A direção nacional da CUT optou por não assinar o acordo e insistir na continuidade das ''negociações''. Mas o presidente da central insistiu na busca de um acordo “aceitável”, ao menos para a Articulação Sindical.


 


Em uma plenária nacional realizada em 21 de janeiro de 1996, representantes de 17 sindicatos e federações de servidores públicos federais filiados à CUT aprovaram a retirada da central das “negociações” com o governo. Nesta mesma plenária também foi apresentada — e derrotada — uma proposta de pedido de renúncia de Vicentinho. Logo em seguida, no dia 31 de janeiro de 1996, o presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Federais (Sindsep-DF), Ismael César, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, responsabilizou o presidente da CUT pelo fracasso de uma paralisação de 24 horas do funcionalismo por melhores salários e contra a “reforma” da Previdência.


 


Relatório da “reforma” é rejeitado


 


No começo de fevereiro de 1996, dirigentes sindicais do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) e do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias (RJ) assinaram uma nota em conjunto com dirigentes sindicais da Corrente Sindical Classista (CSC) e do Movimento por uma Tendência Socialista (MTS) condenando o acordo. ''É absolutamente inaceitável que uma instância de direção, que reunirá apenas a cúpula da central, decida sobre a questão em pauta (o acordo com o governo)'', dizia o documento. Para aqueles sindicalistas, uma decisão tomada por maioria apenas na direção nacional feria os “princípios fundamentais da nossa central, como a democracia e a soberania da base''.


 


À essa altura, até Força Sindical, que sempre defendeu o “entendimento” entre governo, trabalhadores e empresários, já havia abandonado a mesa de “negociações”. Para tentar salvar a proposta, o então presidente da Câmara dos Deputados, Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA), alegando uma “brecha regimental”, utilizou um expediente restrito às “emendas de plenário” para encaminhar o substitutivo do relator Euler Ribeiro (PMDB-AM) diretamente para o plenário.


 


Mas a manobra não deu certo e no dia 6 de março de 1996 o relatório foi rejeitado por 294 votos a favor e 190 contra (eram necessários 308 votos para a aprovação do substitutivo). A “grande imprensa”, o patronato e o governo responsabilizaram a CUT e o “corporativismo do setor público” pelo fracasso das “negociações”. O discurso predominante afirmava que a CUT era refém de “interesses corporativos” dos trabalhadores do setor público e, portanto, qualquer tentativa de negociação com a central seria inviável.


 


Mudanças radicais no mundo do trabalho


 


FHC reagiu imediatamente e retomou a sua proposta original, nomeando um novo relator. No dia 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve — ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação eles mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.


 


O mundo do trabalho vivia momentos de mudanças radicais e os sindicatos, sem forças para reagir à altura, se retraíam. O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) — chamada de MP da desindexação — que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do “Plano Real”. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país. A atitude de Vicentinho no acordo da Previdência, no entanto, deflagrou uma aguda crise no interior da CUT — assunto da próxima coluna.


 


Leia também:


 


CUT: das raízes aos frutos
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19506
CUT-24 anos: agudo conflito de classes
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19609
CUT-24 anos: o batismo de fogo de Lula
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19761
CUT-24 anos: a última ação unitária
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19902
CUT-24 anos: a controvertida decisão do PT
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=20052
CUT-24 anos: a incorporação da CSC à central
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=20151
CUT-24 anos: a resvalada da central para a direita
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=20329
CUT-24 anos: a maior crise da central
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=20490


 


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor