Uma feitoria, de mentalidade escravocrata e colonialista.

É consenso entre estudiosos da nossa realidade que o Brasil não é um país pobre, mas um país desigual, profundamente desigual. Uma desigualdade que está explicitada cotidianamente nas ruas, e comprovada em números nas pesquisas que falam de uma ínfima parcela composta por 1% de super ricos e que concentra cerca de 50 % da riqueza socialmente produzida no país.

Várias são as causas dessa repartição perversa. Porém, não há como negar, o nosso passado colonial e escravista está também na origem dessa desigualdade renitente, que ainda permanece nos dias de hoje.

Diante disso, uma inquietante questão se coloca. Por qual, ou quais razões, essa desigualdade, tão vergonhosa para o país no cenário internacional, não causa aqui espanto ou indignação? Por que tão escandalosa desigualdade não provoca revolta no chamado “cidadão de bem”, que paga seus impostos? não seria de se esperar que esses zelosos cumpridores de suas obrigações tributárias ficassem ao menos incomodados em saber que a maior parte da riqueza de seu país, incluído aí o seu imposto, é apropriada por essa minoria, por esse 1%, ao invés de vociferar contra programas sociais dirigidos a seus compatriotas que deles necessitam para que não se tornem miseráveis?

Uma das explicações possíveis é que, no Brasil, essa desigualdade é tida como um dado natural. É o que somos levados a pensar quando nos deparamos com o assustador silêncio da sociedade diante do absurdo que representa a Portaria do Ministério do Trabalho (1) e sua tentativa de “flexibilizar” o entendimento sobre o que é trabalho escravo ou análogo a essa condição. Embora configurando um gigantesco retrocesso, a Portaria, ao que parece, não causou qualquer indignação, por exemplo, naqueles que julgam imoral a exposição artística de corpos, mas não vislumbram qualquer imoralidade no fato de pessoas serem submetidas a condições de trabalho degradantes.

Podemos concluir que, embora seja produto de relações complexas em que fatores econômicos, sociais e políticos se combinam, a desigualdade no Brasil é mantida e legitimada por concepções que estão visceralmente ligadas ao escravismo, onde não há igualdade possível. Isto porque a pessoa escravizada, é considerada não humana, e, portanto, jamais poderá ser “igual”.

Formalmente, o período escravista em nossa história foi encerrado em 1888, mas, tragicamente, a logica da escravidão ainda permanece. O desprezo ao escravo transformou-se no “ódio ao pobre” (para usar aqui um termo do sociólogo Jessé Souza), e também no ódio a qualquer tipo de iniciativa que minimamente sinalize uma redistribuição de riquezas e que ameace retirar o pobre do que se convencionou ser o “seu lugar”.

Essa é a mentalidade dos que, longe, muito longe de fazerem parte da turma do 1%, pensam e agem como se fossem um deles. Para essa gente, trabalho escravo, trabalho precário, trabalho degradante, simplesmente não são questões do seu interesse, pois

julgam que essas tragédias não afetam a si ou a seus iguais, mas aos “outros”. Também não se importam em ver as riquezas de seu país sendo dilapidadas, embora gostem de ostentar um prosaico patriotismo de ocasião, usando sem pudor o verde e o amarelo, numa verdadeira profanação de nossas cores nacionais. São esses que apoiam e banalizam a desigualdade que castiga o povo e não se ressentem dos ataques a nossa soberania que colocam o país em condição subordinada no conjunto das nações. Segundo suas concepções retrógradas não há nenhum problema em que o Brasil se transforme em um mero entreposto para a realização de negócios (ou negociatas); em suma, uma feitoria, de mentalidade escravocrata e colonialista.

____________________________

(1) publicada em 16 de outubro de 2017, a referida Portaria está temporariamente suspensa pelo STF.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor