A China diante da armadilha de Tucídides

“Quando reina o grande Tao o mundo pertence a todos”. Xi Jinping, o reeleito presidente da China, escolheu essa citação clássica para encerrar seu discurso ao plenário do 19º Congresso do Partido Comunista ocorrido em meados de outubro.

Ilustração: Tainan Rocha

A citação acentua tanto a tradição milenar do pensamento chinês como reforça a ancestralidade de um pensamento próprio para as relações com o mundo. A China da “nova era” anunciada por Xi, tal como foi em toda a sua história, não buscaria hegemonia e tampouco capacidade de interferir nos assuntos internos de outros países. Sua ascensão à condição de potência global e, em breve, consolidação como maior economia do planeta, terá como base a cooperação e o benefício mútuos, não o confronto. A China, como tornou a repetir seu presidente em fórum internacional há cinco dias, busca promover a construção de uma comunidade de destino comum para a humanidade.

Xi enfatizou que a China se opõe a que “os poderosos humilhem os mais fracos” e criticou a sobrevivência da mentalidade da Guerra Fria. O novo mundo e seu novo caminho seria o de parcerias ao invés de alinhamento, diálogo ao invés de confronto, “ganha-ganha” ao invés de “soma zero”. Não é o primeiro líder a dizer algo que coloca um instintivo sorriso de canto de boca em qualquer um versado na abordagem “realista” das relações entre os estados. Afinal, como ensinava o ateniense Tucídides, tão antigo como Lao Zi, a quem a tradição atribui a autoria do Tao, a ascensão de uma potência tem como regra deslocar outra, que reage com a guerra.

Sabe-se que a estratégia chinesa precisa tranquilizar os assustados eventuais oponentes. Uma leitura rápida das análises na imprensa norte-americana sobre o 19º Congresso mostra a presença de um desconcerto diante das palavras de Xi. Escrevendo no Finantial Times, o ex-primeiro ministro da Austrália Kevin Ruud, um aliado dos EUA, alertava para os flancos abertos de um “Ocidente complacente” e advertia que “se não temos uma estratégia, a China tem”. Martin Woolf, no mesmo veículo, se conformava com o fato de não haver opção a não ser colaborar em algum nível com a potência asiática para, em seguida, afirmar que “se a China é nossa parceira, não é nossa amiga”.

O Dow Jones Newswires manifestava preocupação latente quanto às chances de Trump “ceder à tentação” e fazer um acordo com a China, especialmente após as cordialidades formais trocadas na visita do presidente norte-americano a Pequim, no início de novembro. E mesmo um intelectual conhecido por seu trabalho sobre o “mundo pós-americano”, Fareed Zakaria, concluía sua participação em um debate da canadense Aurea Foundation, ainda em 2011, com um patético apelo ao coração e fé “das sociedades livres e abertas” para obstar a China.

Se a ascensão econômica da China não é nenhuma novidade, o que causa o atual desconforto? Estará o “Ocidente” esperando aflito a chegada de bárbaros que não existem mais, como no poema de Konstantinos Kaváfis? “Sem bárbaros o que será de nós?Ah! eles eram uma solução?”.

Seja pelo motivo que for, temos de um lado um ator que, a partir de suas raízes históricas, propõe uma nova ordem internacional amparada em conceitos estranhos ao que se convencionou chamar de “Ocidente”. Ao fazer isso, a China diz reivindicar tão somente o lugar no mundo que ocupou pacificamente em quase toda a sua história, superando em definitivo uma época de humilhações para restabelecer o respeito que os chineses sempre tiveram por si mesmos e que esperam receber do mundo. Afirma que isso se dará em paz, pois seu sucesso econômico da China abrirá possibilidades para todos. Do outro lado, temos o bloco dos EUA e seus satélites, cada vez mais economicamente ligado à China e cada vez mais sem saber como construir um adequado conceito de “rival” para um país que oferece sorrisos e imensas oportunidades de negócios.

Há leituras que forçam a caracterização da China como o novo desafiante da hegemonia norte-americana. Essa idéia seria familiar ao discurso do inimigo, que animou a Guerra Fria e continua justificando as ações militares norte-americanas pelo mundo. Porém, de sua parte, a China rejeita esse rótulo. Em seu discurso, Xi apresentou seu país como um exemplo de sucesso na superação da pobreza, mas reforçou que se opõe a qualquer tipo de ingerência nos assuntos de qualquer outro estado. Não se trataria de disputar com os EUA, mas de fazer parte de um mundo que além de não poder mais ignorar a China, também não pode prescindir dela.

No mesmo debate já mencionado, da Aurea Foundation, o experiente Henry Kissinger dizia que a questão real a ser discutida não é se a China será ou não a potência hegemônica do século XXI (e ele acha que não), mas sim qual será a posição dos Estados Unidos diante do desafio de lidar com esse enigma chinês. Inclusive conceitualmente, os especialistas e estrategistas terão que se empenhar mais para repensar o que hoje se compreende como sistema internacional. Claro que a transnacionalização da economia e o surgimento de temas cuja natureza exige a cooperação (meio-ambiente, por exemplo) já vinham agindo nesse sentido, mas a voz potente da China é um elemento a mais no desafio de revisão conceitual. E qual será a posição adotada pelos EUA para se posicionar nesse cenário? Essa incógnita é a chave do que virá pela frente.

A China avança sem agredir, e isso causa desconcerto. Ela não propõe a dissolução de instituições internacionais ou a criação de congêneres rivais, experiência que conhecemos. Sua estratégia nas relações exteriores passa pela construção lenta e gradual de organismos paralelos, com o enorme cuidado de não parecer gerar contradições ou rivalidades. Um exemplo próximo a nós, latino-americanos: a China não precisa buscar consolidar algo como a Aliança do Pacífico para fazer valer seus interesses se contrapondo ao Mercosul, mas busca dialogar com os países que aceitam o diálogo, abre linhas de crédito, financia a construção de infra-estrutura. Um outro exemplo é do grupo “16+1”, que reúne dezesseis países do Leste Europeu e a China com a mesma justificativa dos investimentos. Há incômodo na União Europeia, mas não se pode acusar os chineses de buscarem sua desarticulação.

Xi Jinping fechou seu discurso citando o Tao para depois conclamar os militantes do Partido Comunista a se empenharem cada vez mais nos objetivos de modernizar o país, reunificá-lo e defender a paz mundial e o desenvolvimento comum de todos os povos. Xi poderia ter citado outra passagem do Tao: “não há nada mais fluido e suave que a água e, no entanto, nada se iguala a ela para atacar a rudeza”. Lentamente, a água abre caminho entre as montanhas com força paciente, constante e quase imperceptível, redesenhando a paisagem. Como a China… Lao Zi seguirá nesse caminho, desfazendo a armadilha de Tucídides? Mais de 2 mil anos após a morte de ambos, é essa a grande questão do nosso século.

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