Paradoxos da democracia à brasileira

Falar de democracia é lidar com paradoxos; no Brasil, ainda mais. Na coluna de hoje, vamos ver como a pretensa democracia brasileira se constrói e como ela mesma constrói, a partir de nuances históricos, caminhos capazes de dar tiros nos próprios pés.

A ideia é discutir alguns caminhos adotados em busca da afirmação do ideal democrático no Brasil e seus paradoxos, sobretudo a partir dos últimos acontecimentos envolvendo a crise no Rio de Janeiro, a tentativa de implementação de um “semipresidencialismo” (sic) e o depoimento concedido pelo advogado Rodrigo Tacla Durán à CPI da JBS.

Um dos paradoxos da democracia envolve a tentativa de controlar a hipertrofia da política e da economia pelo direito, como se o direito pudesse, como num passe de mágica, ser o redentor de uma espécie de “paz social”, controlando as dinâmicas de poder pela sua própria força. Ou seja, o direito seria “a força que engoliu a própria força”, nas palavras de Tobias Barreto em suas “Questões vigentes”.

No caso da Constituição de 1988, as regras nelas contidas, pensadas em um contexto de ruptura com o regime militar, com foco no modelo de proteção ao elemento de representação do povo numa democracia, pareciam servir como antídoto a um possível retorno da ditadura naquele contexto dos anos 80.

Ao que parece, esse mesmo sistema normativo e principiológico voltado à proteção do povo pode – em outro momento histórico em que só se torna “representante do povo” quem constrói pautas a partir de alianças nem sempre republicanas com os demais setores da sociedade, inclusive a economia que gira em torno do crime organizado – legitimar a própria estrutura que diz desejar combater e, paradoxalmente, sem a qual os negócios dos representantes, lícitos ou não, possam seguir em frente.

Essa é a situação da imensa maioria dos membros de nosso parlamento e, na situação concreta envolvendo a casa legislativa do estado do Rio de Janeiro, quase a sua totalidade. Ou seja, as regras de proteção daquele que se coloca como representante do povo pode funcionar, a partir das mudanças nas formas de cooptação e de acesso ao poder, como escudo para a perpetuação de falcatruas.

A queda de braço que vimos nas semanas que passaram mostram que o resultado prático dessa “lambança”, para usar uma palavra do momento, é a guerra, permitida pelo STF, entre o Judiciário e o Legislativo. Com a decisão que beneficiou Aécio, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro decidiu por retirar da prisão a cúpula “picciânica”, pelo que, incontinenti, a justiça, com magistrados esbravejantes – algo fora de qualquer padrão que se espera de quem ocupa cargo tão relevante – decide pela volta dos “picciânicos” à cadeia.

Independentemente do debate de quem “está com a razão”, o que transparece é uma disputa de poder, e nessa o judiciário vem ocupando mais e mais espaço. Outro paradoxo: uma pretensa democracia estabelecida por meio de pessoas não chanceladas pelo sufrágio universal, algo no mínimo complicado de se entender na dinâmica desse regime político.

Falando no judiciário, não podemos nos esquecer do auxílio luxuoso do ministro Alexandre de Moraes, que busca a todo custo sedimentar a velha “democracia sem povo” ao ressuscitar o Mandado de Segurança 22.972, de 1997. Você não leu errado: faz 20 anos que esse MS dorme em berço esplêndido nas gavetas dos ministros do STF. De repente e às avessas, como se a cartola quisesse sair de dentro do coelho, o referido ministro levanta a bola do que pode ser a pá de cal para sacramentar de vez “o grande acordo nacional, com supremo, com tudo”.

Agora o Supremo teria o papel de permitir, ao arrepio da vontade popular manifestada no plebiscito de 1993, o parlamentarismo que fora naquela consulta rejeitado de forma peremptória pelo povo brasileiro. Só que o eufemismo para permitir tal pachorra seria o “semipresidencialismo”, algo que não se vê em quaisquer livros jurídicos sobre formas de governo e temas assemelhados. Uma tentativa de, por meio da utilização de um nome de fantasia, driblar a vontade popular expressamente consultada sob a égide da ordem constitucional de 1988 para tal fim – e o povo disse não ao parlamentarismo quando consultado sobre a possibilidade de sua implementação no Brasil. Mais um paradoxo: a decisão do STF que se diz democrático ao arrepio da vontade explícita do povo. Claro que a resposta à pergunta “quem é o povo?”, por mais complexa que seja, não pode, no caso brasileiro, deixar de considerar a deliberação já tomada diretamente via plebiscito.

Ainda no jogo de cena envolvendo o poder, tivemos esta semana o depoimento prestado pelo advogado Tacla Durán à CPI da JBS. Assisti a todo o depoimento pela internet, já que a “grande mídia”, à exceção da coluna Painel da Folha de S. Paulo, praticamente ignorou esse episódio, e, quando dele tratou, nada mais fez do que selecionar aquilo que a ela interessa: a informação de que o ex-procurador geral da República Rodrigo Janot pode ter utilizado documentos inverídicos para fundamentar a segunda denúncia contra Temer.

Mas todos nós sabemos que quando se quer exibir demais certa forma de compreensão é porque há outros tantos elementos a esconder. Afirmar algo é ocultar outros tantos. E Tacla Durán enfrentou outros temas espinhosos à Lava-Jato, como a possível participação do advogado Carlos Zucolotto Junior, padrinho de casamento de Sérgio Moro, na negociação de um bom acordo de delação premiada de forma a livrar Tacla das consequências do direito de forma célere.

Mas isso envolveria o pagamento de 5 milhões, “por fora”, para poder “resolver o pessoal que vai ajudar nisso”, como diz o print do celular utilizado como prova do contato entre os dois. Na transcrição do print da tela do celular, Zucolotto diz a Tacla: “meu contato vai conseguir que DD entre na negociação”. Outra passagem do depoimento menciona que onipresente Marcelo Miller, o da “lambança”, teria entregue uma lista com nomes de políticos para que Tacla pudesse implicá-los numa possível delação, o que, dentre outros fatores, mataria o caráter “espontâneo” que em tese caracterizaria uma colaboração premiada.

Sendo verdade o que Tacla Durán teclou com Zucolotto, temos uma verdadeira trama de ares hitchcockeanos, em que os que posam de heróis protegidos pelas togas e pelos cargos são também bandidos à sua maneira. No afã de “limpar o Brasil”, vemos como, em nome do discurso vazio da moralidade, é possível cometer as maiores atrocidades contra a democracia no país. E o mais irônico e paradoxal: a possível prática de atos criminosos justificados como sendo uma defesa das instituições e do estado democrático.

Como diria Manuel Bandeira, “tão Brasil”.

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