“Baixio das Bestas”: Arte sem costura

Diretor pernambucano, Cláudio Assis, tenta analisar relações humanas na região da cana-açúcar e deixa de dar sentido à ação dos personagens.

É lugar comum dizer que cinema é imagem, cinema é luz. Imagens desconexas, iluminação deficiente não fazem, necessariamente, bom cinema. Um filme é, então,  uma sucessão de imagens, montadas em seqüência, em flashbacks ou não, para fazer sentido. Um sentido que não vem propriamente da história contada, com princípio, meio e fim, mas da ordenação das ações dos personagens e dos fatos que os movem. Assim, didatismo à parte, pôr imagens na tela não significa fazer um bom filme. A expectativa que se criou em torno de “Baixio das Bestas”, do pernambucano Cláudio Assis, levava a crer que estaríamos, mais uma vez, diante de um fenômeno cinematográfico. Muitas de suas explosivas entrevistas contribuíam para isto. E, inclusive, as inúmeras estrelinhas apostas no final das críticas dos jornais pareciam confirmar a excelência da obra. “ Baixio das Bestas”, no entanto, não é nada disto. O cinema de Cláudio Assis é o que se pode chamar de “cinema naif”, aquele cheio de imagens brutas, sem encenação adequada, pontuado de sexo, palavrões e iluminação derramada, tomada muitas vezes pela completa escuridão em que mergulham os personagens – e não se trata aqui de metáfora ou “estado de espírito”. Há de se perguntar se tudo isto é consciente, feito de maneira a provocar estranhamento.



                          


Começa pelo prólogo: cenas de uma velha – supõe-se – usina de cana-de-açúcar no agreste pernambucano, para cortar logo para uma seqüência mal iluminada de exploração sexual infantil. Vista em grande plano, à distância, o que era para chocar, perder-se no cenário, tomado por homens, mato e paredes escuras. Corta para um diálogo bruto entre dois personagens, o avô pedófilo, Seu Heitor (Fernando Teixeira), e seu amigo, Mestre Mário (João Ferreira), mestre de maracatú. Uma conversa entre dois seres deslocados no tempo e no espaço. Machistas, nostálgicos e deserdados. Nas seqüências seguintes vemos o canavial, nova cena de prostituição infantil, prostituição de beira de estrada, caminhões carregados de cana-de-açúcar e,  para sedimentar a fama do diretor pelas cenas violentas desconexas, sexo grupal, nu frontal masculino e sado-masoquismo. 


 


                          


Personagens agem como Seres bestializados
    
                          


 


á, desta forma, o vértice central: a exploração da menor Auxiliadora (Mariah Teixeira) pelo avô, e mais dois vértices menores, mas não menos importantes: o da zona de prostituição e o dos pequenos burgueses que perambulam pela cidade à procura de prazer e terminam por brutalizar as prostitutas. Estas agem como seres bestializados, sem vontade própria, estando ali para isto mesmo; serem espancadas e usadas sexualmente. Seu interesse em aceitar esta situação seria, na visão de Cláudio Assis, apenas pelo dinheiro, ao qual se referem o tempo todo. Principalmente quando estão no prostíbulo ociosas. Neste momento de recesso, vociferam palavras sem nexo, se agridem e, até, se insurgem contra a cafetina, mas só em palavras e resmungos.



                         


Além destes vértices, “Baixios das Bestas” inclui ainda referências à cultura popular, através do maratú, e da vida na plantação de cana-de-açúcar. São meras referências, pois a dura vida dos bóias-frias pernambucanos não surge em sua inteireza no filme. São vistos nos caminhões e à distância. Deles se sabe pouco. Depreende-se que Cláudio Assis e seu roteirista Hilton Lacerda estivessem mais interessados em tratar das conseqüências da vida desses homens e mulheres brutalizados por uma vida sem perspectiva, da busca de prazer noturno no prostíbulo  e junto às paredes da usina, que de sua exploração pelos usineiros. É pouco, uma vez que se tem de fazer um tremendo esforço para “sacar” esta intenção. Mais explícitas estão suas indicações pró-cultura popular. Os integrantes do grupo de maracatú travam uma discussão sobre se deviam ou não – e em quanto – seriam remunerados quando de sua apresentação em Recife. Alguns concordam que o dinheiro é pouco, mas, com a exibição poderim mostrar seu trabalho, enquanto outro acha que o cachê deveria ser maior. A utilidade desta discussão está em que a maioria dos grupos de cultura popular é obrigada a se apresentar em troca de migalhas para as autoridades que, com isto, posam de defensoras da cultura popular.


 


                    


É pouco filme para tanta expectativa


                    


Em se tratando de cinema é muito pouco para um filme que trouxe tanta expectativa. Não há, a rigor, a “dinâmica do quadro”, ou seja, a ação condicionada pela contraposição entre interesses, atrações ou antagonismo, que permitam o entendimento dos entrechos do filme. Explica-se: Eisenstein, mestre da montagem, indica que, ao invés de se contar uma história, pode-se, com a “dinâmica do quadro”, ir incorporando seqüências que, por si, darão sentido ao todo.  Em “Baixios das Bestas” não se tem nem uma coisa nem outra. O “cinema naif” de Cláudio Assis e de outros diretores nacionais não permite fazer análise diferente desta. Cenas que poderiam render em intensidade, mostrando o drama das mulheres que ganham a vida nos prostíbulos, como Bela, personagem de Dira Paes (uma grande atriz), terminam em anticlimax. Ela cai nas mãos do grupo de pequenos burgueses sádicos, comandados por Everardo (Matheus Nachtergaele) e Cícero (Caio Blat), que a sodomizam e abandonam sem outras conseqüências. Mais uma vez, com um pouco de esforço, pode-se dizer que no agreste é assim mesmo, os filhos dos usineiros “aprontam todas”, sem qualquer punição. Noutra cena, igualmente decisiva para a compreensão do drama humano, desta vez, da adolescente Auxiliadora, tudo ocorre sob luz baça, noturna, numa espécie de danação da vítima. Quando ela chega em casa, seu avó ainda a maltrata, sendo sua única saída “os braços da prostituição”.



                   


Um cinema sem concessões poderia caminhar, claro, para desfecho semelhante, mas, na visão de Assis e Lacerda, Auxiliadora termina achando que ficar no prostíbulo é melhor do que conviver com o avô que a explora sexual e economicamente. É, na verdade, uma escrava-adolescente. Com estes entrechos, fios de história, bem amarrados, encenados e fotografados, “Baixio das Bestas” redundariam num filme bom de assistir, a exemplo de “Anjos do Sol”, de Rudi Lagerman, embora este descambe muitas vezes  para o lugar comum dos filmes de fuga de prisão em plena floresta. Porém, em termos de denúncia de exploração de menores é mais conseqüente. “Baixios das Bestas” acaba sendo um filme que promete muito e não dá vazão ao tema da exploração sexual infantil e de suas ações paralelas. Iguais à da vida nos canaviais se tornam apenas referências. É uma pena. O cinema do Nordeste tem premiado o público com grandes filmes. São os casos de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Cidade Baixa”. Depois, Pasolini, com seus filmes “Salô” e “Pocilga”, foi muito mais longe em termos de perversidade, sadismo e masoquismo, numa sociedade em que brutalizar e retirar prazer de seres indefesos é uma forma de escape das classes dominantes.


                   


Apocalipse baixou no agreste pernambucano
          
                   


O que se vê em “Baixios das Bestas”  é uma sucessão de perversidades, com papéis invertidos, em que a moral muda de posição a todo instante. Aqueles que deveriam se mostrar defensores dos bons costumes  são farsantes e amorais. Têm um discurso, caso de Seu Heitor, e uma prática que os denuncia. Os pequenos burgueses são preguiçosos, carentes e sem linhas demarcatórias entre o que é respeitável ou não. Saem pelas ruas como caçadores, o que vier eles traçam, da forma que melhor lhes apetecer. Até aí uma grande denúncia sobre o comportamento da classe dirigente no interior deste imenso Brasil, mas a contrapartida é deplorável. Os trabalhadores e os deserdados não se diferenciam deles. Participam da exploração sexual infantil, abusam das prostitutas, enquanto estas não procuram outra vida. São iguais em tudo. O pessimismo predomina, todos vão ladeira abaixo. Não há neste tipo de cinema a redenção. Todos são agentes da danação causada pelo sistema capitalista. Numa conversa sobre os rumos da usina, Seu Heitor e Mestre Mário falam sobre a manipulação feita por seus donos: uma hora falam em fechá-la, noutra a mantém.  Ficam á mercê da especulação e assim vivem. 



                 



Nada mais reacionário há do que este tipo de visão.  Lembra as pregações evangélicas apocalípticas que gritam a todos os pulmões que o mundo está perdido e sem salvação. A devassidão tomou conta dos homens (e mulheres). Difícil aceitar tal discurso, ainda mais num filme cujas ações não se completam, pelo contrário, ficam nos arremedos. Se a vida no agreste e nas plantações de cana-de-açúcar chegou a este ponto em que algozes e vítimas se igualam, não há mesmo saída. Então, o pessimismo irá triunfar e as bestas irão campear pelos canaviais, arderem sem chances de sobreviver e pagarem pela aceitação da exploração e do hedonismo. Não deve ser outra a simbologia vista a todo instante em “Baixio das Bestas”: o fogo devora o canavial enquanto no povoado a luxúria,  o prazer e a degenerescência se alastram. Mas a vingança não virá dos céus, sim do público que deixa o cinema com a sensação de que, se houvesse nexo entre as cenas, entenderiam melhor o recado do diretor Cláudio Assis.


 


 


“Baixio das Bestas”. Brasil. Drama, 80 minutos, 2007. Diretor: Cláudio Assis. Elenco: Mariah Teixeira, Fernando Teixeira, Caio Blat, Matheus Nachtergaele, Dirá Paes, Marcélia Cartaxo.
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