Legado de Chico Mendes

Se Chico Mendes ainda estivesse entre nós, teria escapado da morte muitas vezes, mas por certo iria morrer agora, de desgosto, só de ver o que estão fazendo com a floresta que ele tanto defendeu. Há 29 anos, quase Natal de 1988, balas certeiras de ruralistas tiraram sua vida, mas ainda hoje reverberam mundo afora, em sinal de alerta.

Mas é um aviso que aqueles que ocupam o poder não ouvem, se fazem de moucos e, muito ao contrário, dão cartão verde aos que saqueiam a madeira, os minérios e a vida na floresta amazônica. Nos fazem lembrar que a morte do seringueiro foi mais que anunciada.

Ele próprio preveniu deus e todo mundo que seria assassinado, deu até os nomes dos prováveis assassinos, mas ninguém fez nada que impedisse o crime, entre os que tinham poder pra isso.

A ganância de filhos pátria tupiniquim e de estrangeiros adentra agora com mais força pelo Acre, chegando aos sertões da mesma Xapuri onde nasceu e morreu Chico Mendes. Está virando área de expansão dos grãos, que espalham transgênicos e agrotóxicos após a retiradas da madeira, sem dó nem piedade, sem a mínima consciência daquilo que hoje chamamos de desenvolvimento sustentável.

O último território a se incorporar ao que em nossos dias é o solo brasileiro, o Acre de muitas histórias vai aos poucos sucumbindo ao achaque. As vozes da floresta, com sua sabedoria milenar, são caladas pelo avanço dos que buscam o lucro fácil, o que talvez explique o slogan “É Hora de Avançar” usado pelo atual governo federal em suas peças publicitárias.

Memória

Na tarde de quinta-feira, 22 de dezembro de 1988, como de costume, vários amigos foram à casa de Chico, pra trocar informações e conversar fiado. Dentre eles, o advogado Gomercindo Rodrigues, um dos mais chegados da modesta residência.

Já em clima de feriadão natalino, rolou umas rodadas de dominó, entremeadas de notícias sobre o terror que a União

Democrática Ruralista (UDR) vinha espalhando na região. Até que Chico anunciou que iria tomar banho e todos foram embora. Gomercindo disse que voltaria mais tarde.

Era uma casa de madeira, de tábuas corridas de um palmo e meio de largura cada, rejuntadas por ripas finas que vedam a fendas e impedem a entrada de vento e insetos. Aos fundos, uma porta dava a uma escada de quatro degraus, que descia a um pátio de chão-batido, onde estava a “casinha” do banheiro.

Sem camisa, apenas de shorts, Chico abriu aquela porta e ia pôr o pé no primeiro degrau quando um homem sorrateiramente postado ao pé da escada disparou um tiro de escopeta (espingarda de cano curto) contra seu corpo indefeso. Os 60 chumbos pegaram o braço e o lado direito do peito e vararam o tórax no sentido transversal, passando pelo coração.

O sangue jorrou alto e o impacto jogou seu corpo pra trás, indo se chocar à parede do lado direito, que ficou ensanguentada e com uma perfuração de projéteis, que até lá chegaram. Ele tentou se levantar, cambaleando, mas desabou. O corpo ficou caído no assoalho, também de tábuas, já morto.

Quando o amigo advogado voltou, já na boca da noite, sentiu algo estranho com a movimentação na rua, defronte à casa. Eram pessoas da vizinhança e, um pouco afastada, uma fileira de policiais militares parados, de armas em punho, como que de prontidão pra manter a ordem pública.

Segundo relato que fez em documentário da TV Câmara, de 2009, Gomercindo, em verdade, já havia pressentido o sinistro nas ruas de Xapuri, todas desertas, fora do costume da cidade. Apenas alguns homens armados se postavam diante de prédios públicos e dos sindicatos de trabalhadores rurais e de seringueiros, que ele deduziu serem jagunços da UDR. Os atiradores não foram apanhados.

A grande mídia brasileira tratou do caso como mais uma liderança morta na região, algo normal, corriqueiro, coisa de pé de página, quando muito. Mas, Chico já era uma personalidade mundial, premiado até pela ONU pela sua luta pacifica em defesa da vida na floresta e da própria Amazônia Brasileira.

Reservas

A mudança nas relações de trabalho na mata, que era no sistema de barracão, de semiescravidão, a educação desses trabalhadores, o atendimento de saúde, são muitas as mudanças

provocadas pela sua luta. A maior, porém, talvez seja mesmo a da ocupação territorial, da “reforma agrária” inovadora por ele proposta e adotada pelo Estado brasileiro.

São as reservas extrativistas, que funcionam num formato que já era adotado nas áreas indígenas, em que os moradores ganham o direito de usufruto, mas as terras continuam de posse da União. Saia fora a figura do fazendeiro, o coronel, que se dizia dono de áreas que não eram dele e explorava o trabalho alheio, dos povos da floresta.

Hoje, são 96 unidades de conservação, entre reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, federais e estaduais, que cobrem uma área de 25.138.036 hectares — cerca de 5% da Amazônia Brasileira.

E, levando em conta as 50 unidades de florestas nacionais e estaduais, onde também vive um grande número de comunidades tradicionais, são mais 29 milhões de hectares de áreas protegidas — outros 5,8%.

Os atuais mandatários do país vêm tentando diminuir o tamanho, mudar destinação ou mesmo desfazer algumas áreas de proteção de grande importância, especialmente no Amapá e no Sul do Pará. Disse ter voltado atrás, mas em verdade escancarou a porteira aos saqueadores com eles mancomunados.

Assim, no mês de aniversário de sua morte, é sempre bom lembrar de Chico Mendes.

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