O Malleus Maleficarum e o parlamento brasileiro

Quando imaginávamos já ter visto tudo o que era possível no verdadeiro circo de horrores em que se transformou o parlamento brasileiro (com as honrosas e combativas exceções), eis que 18 deputados encarregam-se de definitivamente deixar claro que, entre as já conhecidas e pouco abonadoras características da maioria dos membros daquelas casas está também a misoginia.

Há um grande debate sobre em que medida esse parlamento, considerado o mais retrógrado e conservador desde 1964, é ou não o retrato da sociedade brasileira, uma vez que todos foram eleitos; mas esta é uma discussão de grande amplitude e longe de consensos. Assim, o que se quer aqui é apenas chamar atenção para alguns aspectos que envolveram a famigerada votação ocorrida no último dia 8 de novembro na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, Comissão esta criada para analisar e proferir parecer sobre a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 181/2015, que altera a redação do inciso XVIII do Artigo 7º da Constituição Federal para dispor sobre licença-maternidade em caso de parto prematuro , ampliando-a de 120 para 240 dias, entre outras garantias.

Porém, a aprovação da Proposta, relevante e justa em seu objetivo de origem, foi desvirtuada quando, oportunisticamente, foram propostas também duas outras alterações, sem qualquer vinculação com a proposta inicial, no atual texto Constitucional: a primeira, no artigo 1º, inciso III, que trata dos Princípios Fundamentais da República e no caput do artigo 5º no qual está garantida a igualdade de todos perante a Lei. O fato é que, o texto da PEC aprovado pelos 18 deputados – todos homens – apresenta como proposta de alteração dos dois artigos acima citados, com a inclusão da expressão “desde a concepção” . Acontece que, se aprovadas pelo plenário das duas casas, Câmara e Senado, estas duas alterações na Constituição Federal tornarão letra morta a atual legislação que regulamenta a prática do aborto no Brasil. Vale lembrar que, em nosso país, o aborto segundo essa mesma legislação, só é permitido em três casos: Gravidez resultante de estupro, risco de morte da mulher e gestação de feto anencéfalo. Assim, segundo o entendimento desses parlamentares, uma mulher que vivencie qualquer uma dessas trágicas situações deverá levar adiante a gestação, pois caso interrompa a gravidez estará incorrendo em crime contra a Constituição.

Sabemos onde tudo isso acaba: As mulheres das camadas abastadas da sociedade, mesmo não estando isentas dos danos psicológicos advindos dessa situação, recorrerão aos procedimentos clandestinos, porém realizados em clínicas condizentes com sua condição financeira, ou seja, com todos os cuidados de higiene e segurança, minimizando os riscos de sequelas de um aborto. Já as mulheres pobres, as trabalhadoras, que são maioria, recorrerão a outro tipo de recurso, igualmente clandestino, mas sem qualquer tipo de cuidado deixando em muitos casos, danos irreversíveis.

Como se vê, trata-se de um verdadeiro atentado a direitos historicamente conquistados pelas mulheres, mas também uma espécie de perversão uma vez que a criminalização da prática de aborto em situações tão dramáticas, retira da mulher a possibilidade de decidir sobre a continuidade ou não de uma gestação que envolve questões de grande impacto para sua vida, adicionando-lhe uma carga a mais de sofrimentos a situações em si mesmas tão dolorosas.
Nessa perspectiva, a votação da PEC 181 assume ares grotescos. O que se presenciou ali foi uma espécie de simulacro dos tribunais inquisitoriais quando estes passaram a ser ainda mais odiosos, a saber, quando colocaram as mulheres como seu alvo preferencial, orientados pelo Malleus Maleficarum.

Publicado em 1487 (1), já em plena Idade Moderna, este manual jurídico-teológico de autoria dos monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, tornou-se, nos séculos seguintes(2), a principal referência para identificar , acusar, processar e condenar à fogueira, mulheres suspeitas de bruxaria (3).

O livro foi escrito em face de uma Bula do Papa Inocêncio VIII, determinando que se realizasse um rígido combate à bruxaria, considerada a pior das heresias. A Bula do Sumo Pontífice estabelecia que o alvo deveria ser a prática de bruxaria, não fazendo qualquer distinção entre homens ou mulheres. Mas, os autores do Malleus, considerando ser a mulher um ser “naturalmente maléfico” passaram a associar a prática da bruxaria exclusivamente às mulheres . Para os autores, “Ela [a mulher] é mais carnal que o homem, como fica claro pelas inúmeras abominações que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na formação da primeira mulher pois ela foi formada por uma costela do peito do homem, que é torta. Devido a esse defeito ela é um animal imperfeito, que engana sempre” (Malleus, parte I questão 6).

Partindo da premissa segundo a qual as mulheres são seres naturalmente propensos ao pecado por terem uma sexualidade desenfreada, Kramer e Sprenger levam a violência contra as mulheres a um patamar até então desconhecido pelo patriarcado, uma vez que, para eles, as mulheres são merecedoras de todos os sofrimentos e punições por desviarem os homens, estes sim, verdadeiros filhos de Deus, do caminho da virtude.

Ao que parece, os autores do Malleus Maleficarum não estão sozinhos e, ainda hoje, em pleno século XXI, encontram seguidores, mesmo entre aqueles que não leram seu macabro manual ou sequer tenham conhecimento de sua existência.

Assim como os 18 parlamentares da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, outros fundamentalistas misóginos possuem pelo menos dois aspectos em comum com os autores do Melleus – além do próprio fundamentalismo e misoginia.

O primeiro aspecto é que falam “em nome de Deus”. “Em nome de Deus” os tribunais inquisitoriais assassinaram milhares de pessoas, a maioria mulheres. “Em nome de Deus”, parlamentares votam e aprovam medidas fraudulentas, como o afastamento de uma presidenta sem crime de responsabilidade, assim como votam e aprovam leis perversas e desumanas como o congelamento dos gastos sociais por 20 anos, o desmonte da Previdência, a criminosa “reforma” trabalhista, a Lei das terceirizações, só para citar algumas. “Em nome de Deus” e “pela vida” condenam a morte pela miséria ou, pela falta de esperança, uma geração inteira de crianças e jovens.

O segundo aspecto em comum é o prazer mórbido em infligir sofrimento a quem considera fraco e inferior. Tal aspecto, aliás, fez com que o Malleus Maleficarum seja, ainda hoje, objeto de estudo da psicologia e da psiquiatria, tal a crueza das passagens em que os autores, descrevem minuciosamente como torturar as mulheres, que nuas, eram submetidas a toda espécie de sevícias para que confessassem seus supostos crimes. Este prazer mórbido parece ter experimentado os 18 parlamentares quando conseguiram aprovar sua manobra que desvirtuou o propósito original da PEC 181/2015. O indisfarçável contentamento expresso em seus rostos sorridentes pode ser tristemente associado ao contentamento dos inquisidores que, após assistirem à tortura de mulheres, diziam com voz piedosa, tudo estar fazendo para a “salvação de suas almas” – enquanto os nossos nobres deputados dizem tudo estar fazendo “em defesa da vida”.

Notas

(1) O livro teria ficado pronto em 1486, o que leva algumas fontes a considerar este o ano de sua primeira publicação, que de fato, só ocorreu em 1487.

(2) Tendo início no século XIII com a formação de tribunais eclesiásticos específicos para combater heresias a Inquisição (ou “Santa Inquisição”) transformou-se em uma poderosa rede jurídico-teológica a partir do século XV tendo seu auge nos séculos XVI e XVII no combate a Reforma Protestante, perdendo força na medida em que, já no século XVIII o Iluminismo se espalha pela Europa . O último tribunal foi fechado em 1821, em Portugal.

(3) Malleus Maleficarum , “Martelo das Bruxas” ou “Martelo das Feiticeiras”, tal como na edição brasileira. No “jargão” inquisitorial, o termo “bruxa” ou “feiticeira”, envolve uma gama muito ampla de características atribuídas às mulheres. “bruxa” poderia ser uma parteira, uma mulher que conhecia ervas para a cura, ou que fosse possuidora de alguma característica que o inquisidor considerasse “suspeita”: beleza (ou feiúra, segundo seus critérios), modo de olhar, tom da voz. Esta imprecisão facilitava a “comprovação” das acusações.

Bibliografia

KRAMER,H & SPRENGER,J. O martelo das feiticeiras . 20ª ed. Rio de Janeiro, Record/Rosa dos Tempos, 2009.

MICHELET, J. A feiticeira : 500 de transformação na figura da mulher. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1992.

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