Brasil e América Latina: desencontro a favor de quem?

A despeito de seus próprios interesses, o Brasil possui uma longa história de desencontros com a América Latina, a começar pelo conceitual. A ideia de uma América “latina” em oposição a uma “anglo-saxônica” surgiu em meados do século XIX. A origem da expressão é objeto de estudos e polêmicas.

 
Ilustração: Tainan Rocha
 

Alguns defendem que se tratava de um conceito formulado pela intelectualidade francesa vinculada ao imperialismo de Napoleão III: interessaria a Paris uma aproximação com as antigas colônias ibéricas, iniciativa que culminou, em 1861, na invasão francesa e breve governo de um príncipe habsburgo em um Império Mexicano formulado sob medida para franceses e políticos conservadores locais. Em consequência dessa interpretação, a “latinidade” da América seria tão somente o eco de projeto intervencionista e retrógrado. Muitos anos mais tarde, o peruano Haya de la Torre criticou essa definição exatamente por considerá-la excludente quanto à maioria dos povos da região. Em seu lugar, propôs o nome de “Indoamérica”, afirmando que só a herança indígena seria capaz de reconstruir em pedra a América que os ibéricos ergueram em adobe. Já outra interpretação, consolidada pelo filósofo uruguaio Arturo Ardao, atribui ao poeta colombiano José Maria Torres Caicedo a primazia de ser o autor do conceito. No poema Las dos Razas, Caicedo não apenas contrapõe a ideia de uma América Latina a uma “saxônica”, como afirma que os americanos do norte são os “inimigos mortais”, uma ameaça à liberdade.

As disputas sobre origens nunca são gratuitas, mesmo quando restritas aos empoeirados gabinetes das universidades. Por mais críticas que pudessem caber à ideia de “latinidade”, o conceito se firmou justamente por implicar um contraponto aos Estados Unidos, como anunciado pelo poema precursor de Torres Caicedo. No fim do século XIX, a expressão América Latina já era utilizada para identificar os povos ao sul do rio Bravo, unificados tanto por partilharem uma história comum como por terem de lidar com uma mesma ameaça: a política expansionista dos EUA. Em que pese todos os problemas conceituais que possam ser apontados, o latino-americanismo conseguiu consolidar-se como uma das mais impactantes identidades continentais e de resistência a agressões externas.

O Império do Brasil não se via integrado a essa identidade, muito embora daqui também fosse possível dizer o mesmo que Simón Bolívar disse da América de colonização espanhola: somos “mais uma composição da África e da América que uma emanação da Europa”. A elite imperial, monárquica e escravocrata, construiu a imagem de um país que seria o oposto dos vizinhos, apresentados como “instáveis” e “anárquicos”. Decidiu-se então, com efeitos ecoando ainda hoje, que o Brasil não faria parte da sua geografia e de sua história.

Na verdade, para aquela elite o “Brasil” não faria parte nem de seu próprio povo. Significativa é a imagem deixada por Joaquim Nabuco ao biografar seu pai em Um Estadista do Império: a política imperial seria uma ponte suspensa sobre um lodaçal, o povo. Da mesma forma, o estado construído por essa elite seria um bastião de “civilização” em um continente pleno de vizinhos abolicionistas e republicanos. “Civilização”: país assentado em grandes propriedades exploradoras do trabalho escravo, vivendo de exportações de produtos primários e gastando os excedentes em convescotes elegantes onde se lia Victor Hugo no original enquanto os escravos serviam o chá.

A proclamação da República, em 1889, veio no esteio do fim da escravidão e procurou modificar essa autoimagem. O Manifesto Republicano lançado em 1870 pelos cafeicultores paulistas anunciava: “estamos na América e queremos ser americanos”. Contudo, a afirmação de uma identidade apartada dos vizinhos já se consolidara no discurso oficial. A Primeira República manteve seu referencial europeu e, quando pensou a América, o fez a partir da aproximação com os Estados Unidos, não com os vizinhos. Quanto mais construía uma distância do conceito de América Latina, mais o Brasil era apresado pelos interesses alheios.

No final do século XIX, Washington apresentou seu contraponto ao latino-americanismo, com a realização, em 1889, de uma conferência de estados americanos cujo objetivo era assegurar todo o continente como um mercado para os Estados Unidos. A ideologia que amparou esse precedente da ALCA foi o “pan-americanismo”. Quando teve que eleger qual projeto de América seria o seu – a latina ou a “pan” – a elite brasileira identificou-se mais com o projeto norte-americano. Por isso, e em que pesem as iniciativas de articulação do cone sul já no início do século XX, o governo brasileiro não se opôs às muitas intervenções militares norte-americanas no continente. Tampouco se opôs ao Corolário Roosevelt, uma doutrina da política externa norte-americana pela qual os EUA atribuíam a si a prerrogativa de agredir países latino-americanos caso considerassem necessário.

Esse período de formação de uma imagem de Brasil, durante o Império e nas fundações da República, nos legou duas ideias nocivas, difundidas em larga escala pelas elites do país: a primeira diz que não somos latino-americanos (mais recentemente, diz até que o conceito de uma América “latina” é inadequado); já a segunda afirma que a proximidade com os Estados Unidos é benéfica para os interesses do povo brasileiro. A perpetuação dessa forma de compreender seu lugar no mundo é um obstáculo ao pleno desenvolvimento das potencialidades do Brasil.

Mesmo com os desencontros motivados por uma elite que não se reconhece nem no povo do próprio país (quanto mais nos povos vizinhos), todos os momentos em que o Brasil conseguiu alguma projeção no cenário internacional – o que é concomitante com a melhoria nas condições de vida de sua população – o fez aproximando-se de sua identidade latino-americana. Os momentos luminares da “Política Externa Independente” dos governos Jânio e Jango e da “Política Externa Ativa e Altiva” do governo Lula são exemplares. Ambos, aliás, combatidos desde dentro e desde fora por iniciativas golpistas seguidas por retrocessos.

O que nos impede de assimilar por completo essa lição da história? A existência de uma elite econômica e intelectual que, quer seja por seus laços com interesses externos, quer seja pela sua autoimagem eivada de preconceito, insiste em apequenar o Brasil. Ela ainda é, em seu âmago, a mesma elite escravocrata que, no século XIX, negava até a existência de um povo brasileiro. Concebendo a si própria como desenraizada, ela projeta essa imagem para todo o país. É preciso romper em definitivo com essa visão.

Da mesma forma que o Brasil sempre ganhou quando caminhou no sentido da América Latina, sempre perdeu ao aceitar uma relação subordinada com os EUA ou com a potência hegemônica da vez. Mesmo nos momentos de mais vergonhoso servilismo, não se pode apontar um único ganho para o Brasil vindo dos Estados Unidos. Enquanto essa barreira não for superada, teremos que lutar contra a força reativa de mais esse persistente legado da escravocracia, que continua demonstrando sua força.

Os que lutam pela independência efetiva devem se preocupar tanto com os inimigos externos como com os internos, que dormem sob nossas bandeiras enquanto trocam a pátria por passagens para Paris e Miami e sabotam a integração regional amparados em refinadas teses “comprovando” que o Brasil não é, de forma alguma, um país latino-americano. O Brasil só se encontrará consigo mesmo e com um caminho próprio quando também encontrar-se com a América Latina.

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