Efrain Rozowykwiat

A filha Joana Rozowykwiat me fala os dados factuais e necessários: Efrain Ignacio, sociólogo, argentino, filho de judeus poloneses. Depois, me informa também o mais doloroso: Efrain faleceu em 28 de fevereiro de 1984, numa crise de asma, quando um o farmacêutico se negou a lhe vender o remédio que o salvasse.

Depois desse infame ato, Efrain Rozowykwiat morreu sufocado a caminho do hospital. Eu soube mais adiante um dia: o crime da falta de atendimento se deu numa farmácia da Avenida Conde da Boa Vista, no Recife, esquina com a Sete de Setembro.

Joana me informa esses dados como fatos curtos e objetivos. A razão disso, em parte, vem do imediato zap no inbox do Face, onde a comunicação se tornou uma nova telegrafia. Mas há razões menos tecnológicas, mais modernas e poderosas que a mais recente novidade. Trata-se de amor discreto de filha, de admiração guardada pelo pai socialista. E nem é preciso buscar um psicologismo de feira para descobrir tal razão. Lembro da saída de Joana da mesa, lá no Feijão do Norte, na galeria Metrópole, no dia em que fui lançar “A mais longa duração da juventude” em São Paulo. Ali, sob o calor da cachaça que José Carlos Ruy e Osvaldo Bertolino me levaram a beber, eu prometi à sua saída:

– Joana, um dia vou falar sobre Efrain.

E ela, em voz baixa:

– Fale mesmo. Eu sinto falta de que falem sobre meu pai.

O tom com que ela assim se expressou é mais moderno que qualquer zap. Então, tento agora escrever breve nas linhas a seguir.

Para mim, sempre foi estranho, ou melhor, de um estranho agradável, que Efrain fosse argentino. Primeiro, porque falava português sem qualquer sotaque. Segundo, porque falávamos a mesma língua, e isso quer dizer nos anos da ditadura no Recife: sofríamos das mesmas angústias, das mesmas antevisões do que poderíamos ser quando o carnaval chegasse:

“E quem me ofende, humilhando, pisando,
Pensando que eu vou aturar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida,
Duvida que eu vá revidar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Eu vejo a barra do dia surgindo,
Pedindo pra gente cantar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
Abafada, quem dera gritar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”

Mas isso não significava que para a paisagem humana, física, do Recife, a sua pessoa não apresentasse traços incomuns. Primeiro, havia o narigão, mas juro que a gente nem notava muito, quero dizer, o seu nariz não era digno sequer do mais longínquo comentário. Seria como se ele tivesse, tivesse uma, me ocorreu agora, uma papoula ao lado da orelha. E nessa imagem que me socorreu aqui, bem sei, quero apenas dizer: até a sua diferença era uma diferença estética, de acréscimo, nunca um defeito. Pois o diferente não era Efrain, o intelectual com quem gostávamos de conversar sobre música, política, sociologia, filosofia, e o mais que houvesse, ele sempre com um sorriso camarada. Então, que usasse qualquer traço incomum, estava muito bem.

Havia ainda uma outra diferença nele da paisagem de pessoas no Recife. Não sei se consigo ser claro: Efrain era um branco com características de negro. Sério? me pergunto. Se o espírito não me trai em uma armadilha, quero dizer: ele era um branco com cabelos enrodilhados, à semelhança de crespos. E de tal modo que numa sociedade de mulatos nunca percebemos o seu branco. Isso na época era comercial de Omo, não era característica de amigos. O diabo é que ele falava com uma dicção que chegava a escandir as palavras que se exibiam na dentição completa na boca, dentes bons, coisa de gente rica, já se vê. Mas ele, que seria um tipo estranho, esquisito, era ainda assim do nosso time, dos que faziam bem à gente para conversar e gargalhar. A gente nem notava então as dessemelhanças. Só a memória vê, recupera e fica feliz com o que nota. São camadas secundárias, que vêm e retiramos.

Quem trouxe Efrain para o nosso convívio foi Luiz Paulo, um intelectual de Arcoverde que conhecia o Chile, a Argentina, a América do Sul, e nós, em compensação, só havíamos ido até a Mata Norte de Pernambuco. Sobre Luiz Paulo, que fundou conosco o jornal A Xepa, ainda tenho um dia de escrever. Ele é uma das inúmeras pessoas de valor, fundamentais que se foram, tão importantes para os nossos dias, naqueles malditos dias. O fato é que Luiz Paulo trabalhava em um cargo de nível superior nos Correios, ganhava bem – isto é, muito acima da miséria da maioria de nós – e investiu o seu dinheirinho juntado em uma livraria. Nome? Dom Quixote. Belíssimo lugar de encontros e discussões no Beco da Fome, que atravessa a Sete de Setembro. Vão anotando a ironia da vida: Livraria Dom Quixote, Beco da Fome, Sete de Setembro do independência ou morte. Não ficamos independentes.

O fato é que Luiz Paulo nos apresentou Efrain com as melhores referências. Na verdade, nem precisava, porque o “argentino” logo, logo, conversava à vontade sobre os temas que nos preocupavam: O que fazer? Como viver feito gente em uma ditadura? Como agir naquelas circunstâncias? Quais as nossas frestas de respiro. A gente conversava, modo de dizer. Não havia um bar pra gente discorrer sobre o mundo, não havia cadeiras na livraria pra gente se reunir, onde pudéssemos abordar assuntos tão subversivos quanto como viver a cultura no Recife. A gente conversava em pé, de passagem, olhando para os lados, cumprimentando os passantes no Beco da Fome, assuntos entremeados de piadas e observações sobre as pessoas.

Lembro que um dos primeiros projetos que tivemos com Efrain foi um curso de marxismo, sobre O Capital, salvo engano. Isso aí por volta de 1976. Mas onde discutir e ler em conjunto a obra? Ora, simples, digamos (e tamanhas eram as dificuldades, que as saídas eram “simples”). Cada um devia ler o mesmo capítulo mimeografado e depois discutir o que lia com um coletivo de 5 pessoas. Mas discutir onde, pelo amor do deus dos ateus? Ora, no Parque Treze de Maio, lugar de namorados e de encontros mais livres para o amor. Muito bem, então seríamos 5 marmanjos a nos trocarmos juras? Não, seríamos colegiais, apesar das idades acima de 20 anos, a caminhar, de passagem pelas árvores. Íamos e voltávamos, em novo estilo da filosofia peripatética. A olhar de lado e para trás, como terroristas perseguidos que desejavam se instruir. Mas O Capital exigia reflexão e leitura física das páginas, lidas em voz alta com destaques sublinhados. Então o marxismo ambulante teve que ser arquivado.

Em outra oportunidade, saímos eu, ele e Luiz Paulo de uma casa que era cercada por árvores e jardim. Era um sábado à tarde. Ali, havíamos ido em uma visita “social”, que sempre interpretávamos como socialista e não à toa. Não lembro o quê e com quem conversamos. Nem guardo a frase, o momento falado por Efrain enquanto caminhamos. Lembro o seu sorriso, a concordância tácita de Luiz Paulo, que era bom de polêmica e irônico. E eu feliz ao lado dos latino-americanos de experiência feitos, pois à procura de luzes sobre o momento histórico eu andava. Eu de nada sabia e de quase nada sei ainda hoje. Mas aprendi à custa de consultar a memória e reflexão: se há uma coisa que permanece na vida é que mais valem as pessoas. Elas constituem um novo ser para nós.

É curioso, inexplicável, que na última imagem guardada de Efrain ele me chega pálido, entre brumas, como se as névoas fossem possíveis no calor do Recife. Compreendo a razão. As brumas da lembrança vêm do livro de Antonio Cândido, Formação da Literatura Brasileira, que lhe vendi. E por quê? As condições em que me desfiz não eram as ideais de sobrevivência. E não sei que imperativo categórico manda sacrificar o que achamos recuperável. Mas lembro entre as brumas que Efrain me pagou um preço justo, com um sorriso pálido, porque devia adivinhar as condições em que o projeto de escritor se desfazia. Mas o mais curioso – mais que o dinheiro, à distância – foi saber que o livro estava em ótima guarda, que mais uma vez Antonio Cândido encontrava o seu leitor ideal. Ali, em frente à Dom Quixote, quando lhe propus a compra com a voz baixa, envergonhada, à semelhança de Joana quarenta anos depois em São Paulo:

– Fale! Eu sinto falta de que falem sobre meu pai.

Pelo inbox, Joana me conta que o seu nome foi ele quem escolheu, em homenagem à sua avó Tereza Costa Rêgo, que Joana se chamava quando militava clandestina, ao lado do esposo Diógenes Arruda Câmara. E aqui vem uma discrição de sobrevivência física e de caráter: quando Efrain chegou ao Recife em 1974, depois da tempestade fascista sobre 6 militantes assassinados de uma só vez, ele mantinha contato com o dirigente do PCdoB, o sogro. E nada nos fazia adivinhar dos seus laços de sangue por afinidades eletivas.

É estranho, por fim, que ele faleceu aos 33 anos, com a minha idade naquele começo de 1984. Éramos portanto da mesma geração. E ele sempre me pareceu mais sábio, velho e experiente. O quanto nos enganam as aparências. O mais novo que fui escrevo esta recordação.

Para Efrain Rozowykwiat, que nos deixou em 28 de fevereiro de 1984, depois de um carnaval que não chegou para nós como o queríamos:

“Eu vejo a barra do dia surgindo,
Pedindo pra gente cantar…”

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