Nossa triste rapsódia ou “quem é o psiquiatra do psicólogo?”

A coluna de hoje discutirá os impactos dos acontecimentos mais recentes na frágil democracia brasileira e as consequências da tão mencionada abertura da caixa de Pandora no âmbito jurídico, por meio das eternas discussões entre ministros do STF e demais atos praticados pelo nosso sistema de justiça, sobretudo no início da semana. Também veremos os reflexos da caixa escancarada no espaço político, com a manutenção de Temer no poder.


O fundo do poço parece não ter fim. E a triste rapsódia do Brasil tem em setores estratégicos do poder judiciário um aliado e cúmplice de primeira linha. Nesta semana, vivenciamos o episódio do bate-boca entre os ministros do STF Gilmar Mendes e Luis Roberto Barroso, além da decisão do CNJ em que a ministra Carmem Lúcia confirmou a decisão unânime de abrir reclamação disciplinar contra quatro juízes que se manifestaram no Rio de Janeiro contra o processo de impeachment deflagrado o ano passado contra Dilma Rousseff – desta feita sem gaguejar nem titubear como no confuso voto que proferiu em defesa do seu conterrâneo Aécio Neves no julgamento da ADI 5.526, em 11 de outubro deste ano.

Curioso perceber que o CNJ não investiga os inúmeros magistrados que participaram ativamente na defesa do impeachment da então presidente da República, sem medo de mostrar a cara na participação em atos públicos e publicações nas redes sociais. O CNJ institui tudo aquilo que não deveria fazer: estabelecer dois pesos e duas medidas para o que entende serem condutas passíveis de reclamação disciplinar. Se o magistrado defendeu o impeachment publicamente, nada fez de errado. Se o juiz participou de atividades contrárias ao impedimento, deve ele sofrer as consequências pelo fato de não dizer aquilo que a cúpula do judiciário quer ouvir.

Se o juiz censura manifestações artísticas ao arrepio do direito, que problema existirá? Duvido que o CNJ vá investigar, por exemplo, a conduta do juiz Paulo Albiani Alves, da 12ª vara cível de Salvador, que cancelou a apresentação da peça “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, alegando que a recriação da história de Jesus como um transexual envolveria “narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes”. Essa forma de censura a manifestações artísticas, incompatível com a nossa Constituição, nada significa para o CNJ. Como bem disse o juiz da 2ª vara da fazenda pública de Porto Alegre, José Antônio Coitinho, ao apreciar pedido sobre a censura da mesma peça, “a liberdade de expressão deve ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir o desenvolvimento humano”.

O exemplo para impedir atrocidades por meio do direito deveria vir do STF, mas, como já discutimos por aqui, não há uma unidade institucional na suprema corte, mas o desfile de vaidades togadas. E a semana que passou foi pródiga em fornecer mais um capítulo do “romance em cadeia” que mais parece uma ópera bufa. Vejamos a partir das transcrições abaixo:

“Vossa excelência está acabando com a justiça deste país e vem dar lição de moral em mim. Vossa excelência não está na rua – vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do judiciário brasileiro. Vossa excelência quando está se dirigindo a mim não está falando com seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar. Respeite”. O trecho transcrito é da lavra do então ministro Joaquim Barbosa, no dia 22 de abril de 2009, em plena sessão do STF, em resposta ao ministro Gilmar Mendes.

Mais de oito anos depois, no julgamento da ADI 5.763, o bate boca da vez foi com o ministro Luis Roberto Barroso, que acusa Gilmar de ser alguém que “normalmente não trabalha com a verdade”, além de afirmar sua “parceria com a leniência em relação à criminalidade do colarinho branco” no âmbito da suprema corte de justiça do Brasil. Barroso continua: “vossa excelência vai mudando a jurisprudência de acordo com o réu. Isso não é estado de direito, isso é estado de compadrio. Juiz não pode ter correligionário”.

Esse tipo de entrevero exibe a todos nós uma crise intestina na dinâmica dos poderes do Estado. Ministros batendo boca em tempo real pela TV e web: tudo aquilo que uma democracia minimamente estável e consolidada não pode permitir, já que essa atitude prejudica a seriedade e macula a credibilidade que uma suprema corte requer. Muito embora Gilmar Mendes mostre pelas suas palavras e ações que a diatribe contra ele tenha fundamento, é triste ver que os próprios ministros da corte mostram de forma explícita e sem maiores pudores que as decisões são tomadas a depender dos possíveis efeitos políticos e dos CPFs e CNPJs envolvidos. A leniência indicada recai (também) sobre a instituição como um todo, não apenas sobre os ministros A ou B.

A instituição que deveria dar exemplo é a que mais contribuiu para a situação de instabilidade política em que vivemos. No processo de impeachment, o STF permitiu que a chefia do executivo fosse tomada de assalto por uma quadrilha que faz de tudo para manter-se no poder ao arrepio da soberania popular. No julgamento da referida ADI 5.526, a corte por tabela autorizou que outros parlamentares presos de forma acautelatória no âmbito dos estados e municípios venham a ser soltos pela aplicação em efeito cascata da decisão ali tomada.

Essa possibilidade já se tornou efetiva no caso do deputado estadual do Mato Grosso Gilmar Fabris (PSD), xará e conterrâneo do ministro Mendes, que estava preso desde o dia 15 de setembro e foi solto a partir da apreciação feita pela Assembleia Legislativa mato-grossense na última terça-feira, dia 24 de outubro, graças à decisão do STF na referida ADI que beneficiou Aécio Neves e, pelo seu efeito erga omnes, poderá ser utilizada em quaisquer âmbitos da federação brasileira. É, ao que parece, o primeiro caso de uma série que há de vir. Se quem define é a política, o STF subordinou o direito ao poder político, e com essa atitude esvaziou seu poder decisório em tais situações de crimes envolvendo parlamentares, já que agora a última palavra quanto aos efeitos de medidas cautelares “que afetem, direta ou indiretamente, o exercício do mandato” será dada pelo poder legislativo respectivo, por meio dos conchavos e acertos que, infelizmente, ainda estão presentes sob o eufemismo da “coalizão”.

Isto feito, o espaço para a compra de votos a partir dos interesses que estão sob os panos transforma-se, e não é de hoje, em regra em nosso modelo de organização concreto do poder. O efeito no sistema político no atual contexto é a manutenção de um presidente duplamente acusado pelo Ministério Público Federal do cometimento de vários crimes, incluindo a caracterização de uma organização criminosa que ficou clara e evidente quando o deputado Darcísio Perondi, um dos aliados de Michel Temer, foi flagrado na última quarta-feira pelo fotógrafo Lula Marques durante a votação da denúncia contra o presidente, conferindo uma lista de nomes de deputados e valores do Ministério da Agricultura no momento em que fazia um checklist no painel do plenário da câmara. Algo como “O deputado X votou como combinamos? Sim! Então recebe o dinheiro”. O resultado da compra de votos todos nós já sabemos.

Cada vez mais, percebemos que “o Brasil é um parque de diversões arrendado, com uma retroescavadeira parada ao lado, onde a gente só entra pulando o muro dos fundos”, na metáfora da canção de Jr. Black. Enquanto isso, “a criançada, que somos nós, chupa o dedo, resignada, que estava escrito na calçada: ´só o pessoal autorizado e ninguém mais´”. O Brasil aos poucos não é mais do seu povo, pelo que resta a sincera pergunta formulada para a nossa triste e adoecida rapsódia na mesma canção, não por acaso intitulada “Arrendado”, e que lanço, pedindo licença ao compositor de Garanhuns para fazer uma provocação a todos nós:

“Quem é o psiquiatra do psicólogo?”

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