Paternidade(s): uma reflexão necessária

Em 1993, o canadense Michael Kaufman [1] escreveu que a masculinidade (assim como a feminilidade) é uma “alucinação coletiva” que nos lança numa busca fadada ao fracasso por não existir como a imaginamos, ou seja, enquanto uma realidade natural ou biológica. Eu acredito que a mesma reflexão pode ser aplicada à paternidade.

Se o marcador natural representado pela contribuição de um espermatozóide pudesse, por si só, dar conta da complexidade do tema, certamente eu não estaria aqui escrevendo sobre ele, muito menos me propondo a fazer isso a cada 15 dias.

O marco legal, por mais importante e necessário, tampouco consegue responder a essa complexidade. A Constituição de 1988 traz que “Os pais (pai e mãe) têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”; o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, afirma que “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescindível”; a Lei 13.257, de 8 de março de 2016, também conhecida como o Estatuto da Primeira Infância, estabelece que “A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança.”.

Poderíamos falar aqui de inúmeros outros dispositivos legais, no entanto, em última instância, tanto eles, quanto o marco biológico se mostrarão sempre insuficientes quando confrontados com perguntas aparentemente simples, como “O que é a paternidade?” e “O que é ser um bom pai?”.

No clássico livro “A criança e o seu mundo” (1965), o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott [2] dedica sete singelas páginas ao tema da paternidade, em um capítulo intitulado “E o pai?”. As demais 263 páginas do livro são marcadamente inspiradas e dedicadas às mães, por quem Winnicott demonstra imenso respeito e admiração.

Nestas poucas páginas, Winnicott nos brinda com algo que pode à princípio soar um tanto estranho, mas que com um pouco de atenção, mostra um grande valor: “Uma das coisas que um pai faz pelos filhos é estar vivo e continuar vivo nos primeiros anos da criança.”.

Eu tenho um certo percurso com o tema da paternidade, algo que se principiou no hoje longínquo ano de 1999, em um estágio na ONG Instituto Papai, do Recife. De lá pra cá, foram tantos estudos, palestras, oficinas, cursos e textos – dentre eles, o relatório “A Situação da Paternidade no Brasil(Promundo, 2016) –, que acho que posso dizer que sou meio que um especialista no assunto.

Acontece que eu não era pai, o que de forma alguma desmerece tudo o que eu fiz, até porque eu sempre trabalhei e continuo trabalhando para que os homens se envolvam o máximo possível com a paternidade, e não ensinando como eles devem ser pais. A meta sempre foi a equidade de gênero e a busca por um olhar que acolhesse toda a diversidade contida nas masculinidades e nas paternidades, e não a elaboração de receitas.

Mas acontece que eu não era pai e desde as 22:40 do dia 31 de julho de 2017, eu sou, e desde então, a frase de Winnicott tem ressoado em minha cabeça: “Uma das coisas que um pai faz pelos filhos é estar vivo e continuar vivo nos primeiros anos da criança”.

Eu certamente voltarei a abordar a visão (mais comumente, a falta dela) de Winnicott e de outros(as) psicanalistas sobre os pais e a paternidade neste espaço, mas por hora, deixo aqui os múltiplos significados deste “estar vivo” para mim.

Estar vivo e presente em todos os sentidos, para a minha parceira e para o nosso filho, Francisco. Estar vivo e atento a todas as minhas emoções, em especial, aos meus medos. Estar vivo e em paz (ao menos, o quanto der) com a minha própria infância e com as pessoas que um dia cuidaram de mim. Estar vivo e pleno em relação à minha sensibilidade e à minha capacidade de cuidar e de dar afeto. Estar vivo e consciente de que o meu papel importa muito, que a paternidade não é um hobby e que a minha responsabilidade só não é maior do que o prazer que meu filho me proporciona. Estar vivo e não apenas aceitar, como também celebrar a possibilidade de mudança que a paternidade pode trazer para nós, homens. Estar vivo e saber que pensar e vivenciar a paternidade sem repensar a masculinidade e buscar formas de desconstruir o nosso machismo é, ao meu ver, no mínimo incoerente.

Em última instância, é sobre este amplo “estar vivo” para a minha parceira, para o nosso filho e para mim que tentarei escrever, a partir da minha experiência familiar e profissional – que é pessoal e ao mesmo tempo política – e também da experiência de tantos homens que me deram a honra de conhecer um pouco de suas histórias.

Eu estou seguro de que esta reflexão será importante para mim. Espero que também signifique algo para vocês.

[1] Michael Kaufman. Cracking the armour: Power, pain and the lives of men. Canadá, 1993.
[2] Donald Woods Winnicott. A criança e o seu mundo. Inglaterra, 1957.
Ilustração: Snezhana Soosh.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor