Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”

Selene fumava. E punha os desavisados nos eixos.

– Eu sou subversiva! Podem dizer.

Célio a advertia:

– Cuidado com o que fala.

 – Eu sei, é a força da argumentação – ela responde. – Mas a gente pode falar um pouco mais baixo… O companheiro pede a conta?

O companheiro sou eu. Pagamos, nesse plural de modéstia, e saímos para o Parque 13 de Maio. Rodamos a conversar. Entre árvores e namorados, ela pode ficar mais à vontade.

– E o trabalho aqui, como vai? Não, não falemos em dificuldade. A luta é difícil em toda parte. É preciso chamar os setores progressistas. Organizá-los.

Não são só palavras. A sua fala não é só verbo. Ela é o testemunho vivo da luta na clandestinidade. É a pessoa mais eloquente ali. Aquilo que verei em anos mais maduros, quando me espantar ante a grandeza dos feitos em contrate com a maior discrição e modéstia, em Selene, naqueles anos fogosos, ainda não podia ser vista. Gregório Bezerra pouco falava na sua volta pela anistia, me digo. Mas Gregório não era um homem de falas. Era uma rocha de convicções, da mesma natureza de um líder vietcongue. Os seus miolos podiam estourar e ele mudo, no silêncio de palavras apenas. Ou de Patrice Lumumba, cuspindo o papel de jornal que enfiavam na sua boca. Mas ser eloquente também podia ser prova de paixão na luta. Apenas fala quem é de natureza falante, sem que isso diminua o valor do militante. A desproporção em Selene é outra. No Parque 13 de Maio ela vai à nossa frente, baixinha, magra, de minissaia. E nós, marmanjões de 19 ou 20 anos a segui-la como operários que defendem a sua rainha. Melhor, bebendo sem comer a sua primeira musa da guerra clandestina. Quando ela fala, melhor, quando ela quase grita na noite:

– Eu sou subversiva! Eu quero virar este mundo de cabeça para baixo.

Quando ela fala assim, pelo eco em nossa consciência, mais que fala palavras. Fala imagens do que carregamos em nós mesmos, e não falamos tão eloquente. O que você quiser de nós, fale, mulher. Fale, jovem que não é mais criança. O que deseja deste servo da causa? Com Selene vi pela vez primeira uma manifestação que veria depois em shows de artistas fundamentais da música popular brasileira. Foi como, na antecipação do Parque 13 de Maio, ver Luiz Gonzaga na praia de Boa Viagem. Se me faço entender, era de prender a respiração. Era a possibilidade que residia em nós projetada. Mas nada havia de mistura do feitiço que nos atiçava para a posse, que não tínhamos, porque grande e insuperável era o muro da disciplina partidária. Numa palavra. Ela, como sexo, era o socialismo. Então ela me fala sob a luz fantasmagórica da luminária do parque:

– O companheiro Célio não tem onde dormir.

– Sei – respondo. E olho para todos, que são Célio, Selene e Luiz do Carmo. Mas todos olham para mim. Eu sou a salvação escolhida. E gaguejo, numa pretensão de resposta:

– Olha, no meu quarto só tem uma cama. – Silêncio nos olhos fitos em mim. E continuo: – É um calor infernal. A gente sua em bicas.

Ela me responde:

– É bem melhor que dormir na rua. O companheiro está clandestino e pode ser preso.

– Sei. Mas como ele pode dormir? Só pago uma vaga.

Eu ainda não havia aprendido que no movimento clandestino as dificuldades se contornavam. Que haveria sempre um drible esperto. E que as dificuldades legais – o “moralismo burguês” – tinham que ser superadas pela esperteza. Aliás, esperteza, nada, apenas uma ação necessária para a ética da revolução. Roubo, furto, nada disso existia. Expropriação era o nome. E se fosse o furto para um indivíduo? Ainda assim, porque os indivíduos da revolução já estavam desculpados pelo uso irrecorrível de uma ferramenta para a vida clandestina: livros, carro, carteira de identidade, roupas, alimentos, todas as coisas de terceiros estavam sob a mira da sobrevivência do militante. E eu vinha falar que só uma pessoa podia dormir na sauna, porque eu pagava só uma vaga.

– Companheiro… – e a precoce revolucionária me fala didática, do alto da sua experiência provada. – Companheiro, ele sobe com você mais tarde, sem barulho. E qualquer coisa que acontecer é um amigo de visita. Antes que a dona da pensão acorde, ele já estará fora da pensão. Certo?

– Certo – mal falo. A clandestinidade tinha suas leis, todas fora da lei. Eu aprenderia.

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