No aniversário do golpe, o amor armado

“Quem queria fazer um Brasil sério/ Não podia assistir acomodado/ O futuro enganchado no passado/ O presente perdido sem futuro…”

Os versos acima, do poeta Crispiniano Neto, embora tratem de outra época, ajustam-se com perfeição aos dias que vivemos. De fato, essa é a impressão que nos dá, que o nosso futuro está preso no passado e que o nosso presente está perdido e sem futuro. Um ano após a bem urdida trama que apunhalou a democracia, o governo ilegítimo e golpista cumpre com afinco a tarefa de nos conduzir ao passado.

O balanço do último ano é de uma verdadeira tragédia social. Por todo o país, especialmente no Nordeste, a miséria e a fome voltaram a passear de mãos dadas pelas ruas e pelas estradas; a entrega da Amazônia aos interesses do império deixou de ser uma ameaça para se concretizar em realidade; as universidades públicas federais padecem por conta do corte de verbas (e há quem o comemore publicamente); a retirada de direitos impôs um pesado fardo aos trabalhadores; avançam no Congresso Nacional as propostas mais conservadoras já vistas. O balanço, como dito, é de tragédia social.

A extensão do golpe é muitíssimo maior do que pensavam alguns, bem como a sua profundidade. O crescimento do ódio e da intolerância nas redes sociais e nas ruas também é fruto desse processo. Um ano depois, o que vimos diariamente é a proliferação de comentários e de atos fascistas. O fascismo ganhou as ruas, desavergonhadamente, e já passou, em muitos momentos, das palavras aos atos.

O estrago feito em um ano, em todos os campos da vida nacional, equivale a décadas. Estamos retrocedendo a uma velocidade espantosa. As mudanças na legislação trabalhista, para ficar apenas em um exemplo, abrem brechas para condições de trabalho análogas à escravidão. Os donos da banca, os que de fato puxam os cordéis que movimentam os golpistas, comemoram sorridentes. Afinal, o governo ilegítimo tem procurado atender com presteza aos interesses do deus mercado.

O golpe teve o condão também de escancarar de vez a parcialidade e a elitização da justiça brasileira. Nunca ficou tão claro quanto no último ano o caráter de classe do judiciário. Não apenas nas demonstrações dos juízes que, embalados pela atmosfera golpista, vieram a público expor os seus preconceitos e as suas preferências, normalmente envoltos em uma baba de rancor selvagem. Das instâncias primárias até a mais alta corte, a justiça dá demonstrações, todos os dias, de que na sua balança os pratos são absolutamente desiguais.

O golpe permitiu, entre outras coisas, que o comandante de uma das polícias que mais mata afirmasse sem o menor pudor que os seus comandados precisam fazer abordagens diferentes na periferia e nos bairros nobres da capital paulista. A fala do comandante, que em condições outras teria, no mínimo, que dar explicações posteriores à sociedade e aos seus superiores, foi ouvida por muitos como absolutamente normal. Aliás, há tempos que o impensável ganhou ares de normalidade, desde que se afirmou que as instituições estão funcionando normalmente.

Num balanço assim tão trágico, que beira o pessimismo, o que é possível fazer, antes que o país fique totalmente às escuras? É necessário organizar a resistência e a esperança. É necessário resgatar o futuro e retomar o presente nas mãos. É urgente que se restabeleça a democracia em nosso país. É urgente pactuar um programa que tenha a nação e a democracia como centro, com as forças progressistas no comando.

Voltando ao poeta Crispiniano Neto, os seus versos, colocados no início da coluna, têm um belo fecho: “Quem queria fazer um Brasil sério/ Não podia assistir acomodado/ O futuro enganchado no passado/ O presente perdido, sem futuro/ O papel da ternura era tão duro/ Que o amor precisava andar armado”.

A tarefa do momento é desenganchar o futuro, é dar algum rumo ao presente, é combater o ódio e a intolerância, ainda que para isso precisemos armar o amor.

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