Um fausto amante

O primeiro contato com um livro: perceber sua capa, seu formato, seu tamanho. Depois, com o toque, seu peso e sua densidade que, juntas, suas páginas, na mão ainda hesitante, quase em carícia, podem provocar o toque fugidio e ligeiro. Porém um toque.

Admirado da capa, segue nela seu título, trazido ao olhar pelas fontes, pela tipologia que empurra também para a identificação ou certificação da autoria, e tem a cor ou o relevo, algum brilho a fazer passear pela capa – estágio em que a mera visualidade eleva-se ao status de captura e identidade.

A obra, até agora, não abandona a mão, e melhor, a outra mão se aproxima e as duas trocam de função. Aos destros, a esquerda vira suporte para que a direita se revire e se entorte – quem sabe guiada por um algo despertado ainda do primeiro olhar.

Abre-se uma capa, a primeira, e nela percebe-se sua orelha própria; porque sim, é uma brochura, robusta e consistente. Depois, sem sequer haver lido na inteireza a primeira das orelhas caminha-se com alguma avidez para a segunda orelha, e nela a foto do autor – uma imagem simplesmente, e que faz a força da curiosidade prosseguir, sem novamente ater-se ao texto, talvez uma minibiografia, talvez um breve obituário ou alguma declaração fantástica do editor acerca da pessoa na foto.

Deita-se, então, de todo a obra na mão esquerda e é sentida a lombada, fechada e angulosa na palma; junto surge certa textura, possivelmente aveludada, provocando o palpitar estranho; porque não há como se dizer, não há como se materializar o diáfano, sutil e ágil como a luz de inverno à sombra, ao que atinge as mãos e seu dono.

E na sobrecapa abre-se o texto desvelador, objetivo mas parte do contexto, e levanta toda aquela ampla gama de sentimentos para que sejam dominados ou ampliados com a leitura, claro que rápida, das primeiras linhas do texto. Mas não da introdução, prefácio ou outro artifício; porque se quer o sabor da letra de quem escreveu e de como seu autor se postou diante daquele calhamaço amarelecido.

Amarelo, por certo. Porque a obra é no tal papel offwhite, menos clorado, mais texturado e até mais encorpado do que outro, o branco, o tal offset dos tempos de papel almaço da escola. As mãos então despetalam de capa a contracapa, provocando aquele tradicional e suave lufar, um ligeiro passamento de todas as folhas em seu conjunto.

E visto o que se pretendia, excitado pelo que se pressentia, vira o olhar para um algo, digamos, adorador, outros dizem profissional, mas outros ainda dizem amante faustoso: e assim aprofunda-se pelos detalhes, pela consistência final; e não expressa em peso, texturas ou odores. Porque do lufar restou algum odor, muito característico e que exige que se complemente, feito chancela ao que pede maior tempo para levar-se para casa.

Nesse instante, o amante verdadeiro conhece a ficha de produção: o artista da capa, o editor, o revisor, toda a equipe, e se há tradutor, talvez algum ilustrador que pensou detalhes surpresa.

Depois conhece a ficha catalográfica, onde é inescapável a cidade de origem da editora e da criação, e os detalhes de catalogação do conteúdo, de forma fria, impositiva, porém inadiável.
Mas sabe-se amante e percorre de um salto, sim um novo salto pouco mais familiarizado, para o colofão, lá, ao fim do fim no rodapé da página final. E por amar feito fausto, identifica o corpo da fonte, sua família, a fábrica do papel e a gráfica-mãe do objeto que ganha vida nas mãos do agora convertido leitor. Mas esse, exigente, repara ainda no cantinho da dobra das folhas, no alto da lombada junto à capa, para ver se tudo está bem colado, firme, compactado.

O fim, porém, é qual roteiro de hollywood incompleto, previsivelmente feliz porém indefinível. O livro deverá ser levado para a estante de casa ou mesa sem contestação de qualquer espécie – é quase vergonhosa uma barganha frente a boas obras. E se essa aquisição será lida ou o amor consumado, bom, é outra história, porque o amar na relação desse tipo permanecerá sempre modernista: tudo depende da permanência, sem qualquer vazio.

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