CUT-24 anos: o batismo de fogo de Lula

Na seqüência da série sobre a passagem dos 24 anos de fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), retomo o relato da greve de 1980, comandada por Lula no ABC paulista. Depois deste evento, a face política do Brasil mudaria radicalmente. 

O ministro do Trabalho, Murillo Macedo, que reclamava a paternidade da nova lei salarial criada pelo presidente da República João Baptista Figueiredo — para ele uma obra-prima —, a exemplo de Delfim Netto, dizia que, para combater a inflação, os aumentos salariais ficariam por conta da produtividade. “A atual política salarial fez com que se desse, pela primeira vez, papel de relevo à produtividade. Assim, precisamos produzir mais, com os mesmos meios — mesma tecnologia, mesmo capital e mesmo trabalho. Não há outra contribuição a ser dada pelo trabalhador, a não ser a de aumentar a produtividade”, disse ele. Com essa nova política salarial, dizia Murillo Macedo, as partes — empresários e trabalhadores — poderiam se entender nas mesas de negociações. Para o ministro do Trabalho, a fase de “gerenciar greves” — cerca de 150 em 1979 — estava superada.


 


Já Delfim Netto dizia que o problema do ganho de produtividade, segundo ele ao qual estava ligada a distribuição “funcional” da renda, ia depender de um “entendimento entre as partes”. Indagado sobre qual seria o limite desse entendimento, respondeu: “É o cumprimento da lei.” Quando a eclosão das greves de 1980 estava próxima, o comandante da Escola Superior de Guerra, almirante Carlos Henrique Rezende Noronha, declarou: “As greves devem respeitar a legislação vigente no país.” Estava armado o palco para um grande confronto.


 


Apoio de Lula ao empresário nacional


 


Para piorar a situação, membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada pelo ministro Delfim Netto. Obcecado com idéia  de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante — ignorando sua definição segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.


 


Eles tomaram conta da comissão de negociações do Grupo 14 da Fiesp com a decisão de ceder o mínimo possível e recorreram ao governo para que as greves fossem reprimidas. Lula chegou a tocar no assunto durante a assembléia realizada no estádio de Vila Euclides no dia 3 de abril de 1980. “Os trabalhadores se dispõem a lutar ao lado do empresário nacional. Mas para isso é preciso que os empresários tirem a máscara e não paguem mais salários mínimos aos trabalhadores e que deixem de morar em palacetes enquanto a gente mora em favela, e deixem de comer peru enquanto a gente come ovo”, disse ele. Lula exercitava sua habitual capacidade de dizer as coisas com simplicidade e clareza, o que irritava o ministro Murillo Macedo.


 


Mudança no país começaria pelos metalúrgicos


 


Em assembléia realizada no dia 16 de março de 1980 no estádio de Vila Euclides, com a presença de 60 mil metalúrgicos, ele declarou: “Vocês que foram espezinhados, que sofreram durante 12 meses, dão hoje uma demonstração de que se alguma coisa tiver que mudar neste país, vai mudar a partir dos metalúrgicos do ABC.” Se referindo ao ministro do Trabalho, Lula disse: “Vocês viram o ministro mentindo na televisão. Vocês viram ele fazendo uma média com a política salarial que veio arrasar com os trabalhadores. Vocês viram ele dizer que os trabalhadores tinham que ficar atentos àquilo que os seus dirigentes queriam. E vocês sabem o que os dirigentes sindicais daqui querem: o bem-estar de cada um dos trabalhadores de São Bernardo do Campo e Diadema.”


 


Se precisasse recorrer à greve, Lula propôs “uma coisa bem melhor programada do que no ano passado”. Ou seja: receber o vale do dia 25, trabalhar até o dia 31 para garantir o recebimento integral no dia 10 de abril (a maioria dos salários era paga no dia 10 de cada mês), garantindo, com isso, pelo menos 25 dias de greve. Uma nova assembléia foi convocada para o dia 30 de março de 1980, um domingo de manhã. “Se até lá os patrões não tiverem feito uma proposta, a gente decide aqui que na segunda-feira à noite nenhum trabalhador liga a máquina, e pára o serviço de uma vez por todas”, discursou. Enquanto isso, os metalúrgicos realizariam demonstrações de força (fim das horas extras, operação tartaruga e manifestações) “para ir dobrando o ânimo dos empresários”.


 


Longos contatos com Delfim Netto e Golbery


 


A reposta do ministro veio em seguida. “Pode parecer constrangedor passar para a história como o responsável pela interrupção da carreira de vários dirigentes sindicais, porém, como empedernido defensor do processo democrático, aplicarei a lei e cumprirei as decisões da Justiça”, disse ele no dia 27 de março de 1980. Quando mais de 70 mil trabalhadores se reuniram em assembléia no dia 30 de março no estádio de Vila Euclides para aprovar a paralisação, as greves já haviam se espalhado pelo país. Professores, portuários, operários da construção civil, vigilantes, entre outros, também reivindicavam melhores salários. No mesmo dia, metalúrgicos de Santo André, São Caetano e outras cidades paulistas realizaram assembléias e igualmente decidiram pela greve.


 


A paralisação teria início na virada do dia 31 de março para o dia 1º de abril. Na segunda-feira, uma tensa reunião que durou 8 horas no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) terminou sem acordo. O ministro Murillo Macedo acompanhou os acontecimentos em São Paulo e ao saber que a reunião no TRT resultara em nada, comentou: “Pifou. Não deu.” No mesmo dia, ele reuniu-se com mais de 20 empresários — segundo o ministro, ali estavam 70% do PIB — e durante a conversa manteve longos contatos com Delfim Netto e o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva.


 


Justiça do Trabalho declara-se “incompetente”


 


No começo da madrugada do dia 1º de abril, numa assembléia realizada no auditório do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Lula pediu “cabeça fria para todo mundo” e transmitiu uma série de orientações que determinou o comportamento dos metalúrgicos nos dias seguintes. “Não se deve ir para a porta da fábrica, nem tomar o ônibus da empresa. Ficando em casa evitaremos provocações e repressões. Não tomem bebidas alcoólicas durante a greve. Se o sindicato for interditado, vão à igreja matriz de São Bernardo. Não acreditem nas notícias dos jornais, rádios e televisões. Cuidado com os boletins falsos. Evitem gastos supérfluos. Expliquem para suas esposas e filhos a razão da nossa campanha salarial. Eles são nossos aliados”, disse.


 


Na manhã do dia 2 de abril, quase 100 mil trabalhadores reuniram-se no estádio de Vila Euclides para ouvir a decisão do TRT de conceder de 7% a 8% de produtividade. Aquela instância da Justiça do Trabalha também declarou-se “incompetente” para decretar a ilegalidade da greve. Lula interpretou a decisão como “uma vitória da gente”. Ele tinha razão. Os trabalhadores, o governo, o país — todos, enfim — estavam acostumados à tendência de decretação sumária da condição de ilegalidade para qualquer tipo de greve. Além do mais, aquela decisão subvertia uma lógica muito comum em situações de conflito trabalhista: ao decidir que uma greve é ilegal, ou abusiva, a Justiça cria um efeito psicológico muito grande.


 


Vôos rasantes de helicópteros da FAB


 


Enquanto o advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, expunha o resultado do julgamento do dissídio, dois helicópteros da FAB, com soldados do Exército exibindo metralhadoras, começaram a sobrevoar o estádio. Mesmo assim, a assembléia, depois de votar duas vezes devido ao barulho, rejeitou a decisão. “Permaneçam todos calmos. Isso é só intimidação”, disse Lula. Quando os trabalhadores começaram a dispersar, os helicópteros — agora eram três — voltaram a dar vôos rasantes, levantando poeira e papéis. Depois sobrevoaram a sede do sindicato.


 


A 5ª Seção do Estado Maior do 2º Exército informou em nota oficial que para aquele dia fora programada uma série de exercícios de treinamento de embarque e desembarque de helicópteros com soldados da tropa de elite do 2º Batalhão de Guardas. Informou também que os helicópteros, do mesmo modelo utilizado na Guerra do Vietnã, pertenciam ao 4º Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque, e transportavam, em vôos contínuos, oito soldados armados, além do piloto, co-piloto, dois artilheiros e o radiotelegrafista.   


 


Respeito à decisão da Justiça do Trabalho


 


Em nota oficial do sindicato, que irritou os meios militares, Lula repudiou aquela demonstração de truculência. “Lamentamos que nosso Exército seja capaz de mandar seus helicópteros em vôos rasantes sobre quase 100 mil trabalhadores indefesos. Deploramos tão grande irresponsabilidade diante da vida e da segurança dos cidadãos. Somente o alto grau de consciência e a serena confiança dos trabalhadores evitaram uma tragédia de proporções incalculáveis. Responsabilizamos perante a nação os comandantes militares que ordenaram tais operações”, dizia o documento. Ao divulgar a nota, Lula afirmou que procurou, inutilmente, o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o comandante do 2º Exército, general Milton Tavares.


 


Sobre a decisão do TRT de declarar-se “incompetente” para decretar a ilegalidade da greve, Lula disse que “não haveria razão, pelo menos teoricamente, para a polícia ir para a porta da fábrica bater nos trabalhadores”. Segundo ele, a rejeição da sentença do TRT não deveria ser vista como uma radicalização, “mas sim como um direito dos trabalhadores de negociar com os empresários as questões sociais que interessam a eles”. A nota oficial também dizia que o sindicato recebeu “com todo o respeito a decisão da Justiça do Trabalho”. “A assembléia da categoria, hoje realizada, decidiu continuar a greve, não só pelas reivindicações econômicas, mas sobretudo pelas garantias sociais, principalmente a estabilidade no emprego”, afirmava o documento.


 


Negativa dos empresários em negociar


 


A estabilidade no emprego emperrara as negociações no TRT. Os empresários temiam que essa concessão fosse renovada constantemente, o que a tornaria eterna. O patronato nem quis conversar a respeito. “É inacreditável que justamente quando o governo, através dos ministros Delfim Netto e Murillo Macedo, diz que o maior problema nacional é o desemprego, os empresários não queiram negociar a estabilidade”, afirmou Lula. Murillo Macedo ainda tentaria salvar as negociações, sugerindo uma contraproposta de dois meses sem dispensa, mas já era tarde. Todos os sindicatos rejeitaram a decisão do TRT e a greve continuou também em várias cidades do interior do Estado.


 


No dia 3 de abril, a assembléia no estádio de Vila Euclides foi tensa. Lula afirmou que a categoria estava preparada para agüentar até 20 dias de greve e não temia a negativa dos empresários em negociar. O sindicato distribuiu bandeirinhas nacionais aos trabalhadores como forma de responder a uma eventual repetição da passagem de helicópteros militares sobre o estádio. Se isso ocorresse, os metalúrgicos deveriam agitar as bandeiras e cantar o Hino Nacional. Lula criticou a explicação dada pelo 2º Exército para a presença dos helicópteros na assembléia anterior. “Não é justo que o treinamento seja feito sobre a cabeça de 100 mil trabalhadores”, disse ele. O incidente dos helicópteros acabou sendo o principal tema da assembléia.


 


Arrecadação recursos e mantimentos


 


No domingo seguinte, o bispo de Santo André, dom Cláudio Humes, celebrou uma missa campal no estádio de Vila Euclides. Diretores do sindicato e membros da Comissão de Salários mantinham uma intensa busca de apoio à greve, visitando residências dos metalúrgicos e sociedades amigos de bairro. Lula alertou que o ministro Murillo Macedo estava acusando os metalúrgicos de pressionar os trabalhadores que não aderiram à greve e com isso incitava os empresários a ameaçar a categoria.


 


Prevendo o prolongamento da greve, os sindicatos do ABC paulista pediram que fossem criados “Comitês de Solidariedade” para arrecadar recursos e mantimentos. O Fundo de Greve deveria ser reforçado. Dom Cláudio Humes enviou cartas a todos os responsáveis pelas paróquias pedindo auxílio e que ajudassem a “conscientizar todo o povo para que se ponha sempre ao lado dos pobres”. “A igreja se colocou ao lado dos pobres, e nossa diocese também. A greve é justa e pacífica. Por isso, manifestei meu apoio. Penso que todos devem apoiá-la”, disse.


 


Para dom Cláudio Humes, “a luta dos metalúrgicos não era só deles, não só para o proveito deles, mas ajuda a todos os trabalhadores, pois pela força que os metalúrgicos dessa região têm fazem pressão sobre o próprio governo para que as estruturas sociais e econômicas do país sejam mudadas”. A ditadura militar preparava-se para intervir no sindicato e afastar Lula — o que para o governo significaria o fim da sua carreira política. Faltava o motivo. E ele foi buscado.


 


Um obstáculo que precisava ser vencido


 


A decisão do TRT de não decretar a ilegalidade da greve deixou o ministro Murillo Macedo confessadamente surpreso. No dia 3 de abril, uma quinta-feira, enquanto almoçava pato com laranja no restaurante “La Casserole”, em São Paulo, ele disse que só voltaria a falar do assunto no sábado ou domingo, quando retornaria da fazenda de um “amigo” em Jundiaí onde passaria a sexta-feira santa “para dormir um pouco”. Mas deixou ameaças no ar. “Esse negócio de que não tem piquete é conversa fiada. Não tem piquete ostensivo, mas existe inclusive um operário da Volkswagen hospitalizado por causa dos espancamentos que sofreu quando saía do trabalho. Lamento que aqueles que se intitulam líderes induzam os operários a continuar em greve, desrespeitando a lei”, disse.


 


Os empresários também davam a sua contribuição. Na mesma quinta-feira, Murillo Macedo recebeu um telefonema de Antônio Ermírio de Moraes, da Votorantim. “Estão voltando ao trabalho. Convenceram-se que perdem com a greve”, disse o empresário. A comissão de negociações do Grupo 14 da Fiesp, mesmo depois de os trabalhadores terem reduzido à metade as reivindicações salariais, declarou-se “em recesso” e foi elogiada pelo ministro. “Se a comissão está em recesso, isso é bom, pois há uma decisão judicial sobre a questão e esta decisão deve ser cumprida”, afirmou Murillo Macedo. O problema era que essa decisão não servia de justificativa “legal” para a intervenção e o afastamento de Lula. Havia, no caminho do ministro do Trabalho, um obstáculo que precisava ser vencido. Era o governador paulista, Paulo Maluf.


 


Trabalhadores arrastados de volta ao ringue


 


Informações de bastidores diziam que por trás da decisão do TRT de declarar-se “incompetente” para julgar a ilegalidade da greve estava a mão de Maluf. O jogo malufista consistia em afastar Murillo Macedo da corrida à sucessão paulista. Amigo do presidente do TRT, ele teria orientado a decisão no sentido de evitar que o ministro do Trabalho ganhasse pontos junto às instâncias que decidiriam quem seria o próximo candidato a governador do campo situacionista.


 


É difícil calcular o peso que esse entrevero teve no desfecho do conflito. Os fatos mostrariam que se de fato Maluf estava puxando o tapete de Murillo Macedo logo eles se comporiam para atacar mortalmente a greve dos metalúrgicos. Se por um lado é difícil avaliar a influência dessa politicalha no round seguinte, por outro é fácil dimensionar o tamanho do desgaste que a greve sofreu com o longo período de impasse. Os trabalhadores seriam arrastados de volta ao ringue numa condição muito desfavorável.


 


Um novo julgamento político


 


Aos poucos, os metalúrgicos das cidades do interior do Estado retornaram ao trabalho. No dia 9 de abril de 1980 foi a vez de os trabalhadores de São Caetano do Sul decidir pela retomada das atividades. Sentindo o enfraquecimento da greve, empresários e governo se mobilizaram para que o TRT fizesse um novo julgamento. No dia 11, o Grupo 14 da Fiesp fez uma petição para que a lei de greve fosse aplicada, argumentando que a Justiça do Trabalho havia promulgado “um acórdão e os trabalhadores não o acataram, não voltando ao trabalho”.


 


Para Lula, a decisão seria óbvia. “Caso haja a declaração de ilegalidade da greve, o movimento vai prosseguir e os trabalhadores só voltam à fábrica quando obtiverem o que reivindicam. Para a opinião pública também vai ficar caracterizado que o Tribunal, que antes se declarou incompetente para julgar a nossa greve, por pressões do governo e dos patrões voltará a se pronunciar para declarar a mesma greve ilegal”, disse ele.


 


O julgamento ocorreu no dia 14 de abril. E, como era de se esperar, desta vez os juízes declararam-se “competentes”. Eles alegaram que a paralisação apreciada em 1º de abril contava com o apoio de 35 sindicatos e, com a desistência de 33 — apenas os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e Santo André estavam parados —, a greve havia mudado de perfil. Para o TRT, os metalúrgicos que voltaram ao trabalho acataram a decisão de 1º de abril. A ação rocambolesca incluiu uma complicada manobra jurídica. Antes de se declarar “competente”, o TRT julgou uma preliminar de “litispendência”. (O termo vem do latim litis, de lis — lide —, e pendentia, de pendere — pender, estar ligado. Há litispendência quando se repete ação que está em curso.)


 


Constituição e Emenda Constitucional


 


A preliminar foi rejeitada. Segundo o juiz relator do processo, Wilson de Souza Campos Batalha, a “incompetência” declarada no julgamento anterior “contrariou vasta jurisprudência firmada pelo próprio Tribunal, desde 1941”, e “nada impedia que ele retomasse a competência já manifestada em ocasiões anteriores”. Para o relator, “a competência normativa” do TRT estava prevista na Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional número 1, de 1969 — ambas outorgadas pela ditadura militar. A manobra era tão acintosa que o advogado dos metalúrgicos, Almir Pazzianotto, ao falar antes da votação fundamentou seus argumentos em obra do próprio juiz relator.


 


Segundo Amir Pazzianotto, no seu trabalho Tratado de Direito Judiciário, Wilson de Souza Campos Batalha dizia: ''Não há dissídio coletivo para fins declaratórios ao fato da mora salarial nem para qualificação da greve, como licita ou ilícita''. Mas o TRT, naquela altura, estava em outra, a começar por Batalha, que votou contra a sua própria doutrina depois de enroscar-se, juntamente com os demais 27 membros da corte, em debates de horas sobre assuntos como a tal ''litispendência''.


 


Participação dos empresários no episódio


 


A composição do Tribunal era ligeiramente diferente daquela da sessão anterior. Três juizes classistas, representantes dos trabalhadores, votaram pela competência. Um deles, Afonso Teixeira Filho, indicado pela Federação dos Sindicatos de Trabalhadores em Empresas de Transportes, corrigiu o voto anterior alegando que “tinha sido enganado quando da leitura do acórdão que negava competência ao Tribunal para julgar movimentos coletivos de paralisação do trabalho”. Outro, que estava em férias, voltou para mudar o voto do seu substituto. ''Não foi surpresa'', disse Lula ao saber do resultado. ''Havia uma ordem do Executivo”, afirmou.


 


A participação dos empresários no episódio era aberta. Eles foram orientados pelo “especialista” norte-americano Paul F. Shaw, segundo os jornais com 30 anos de experiência em relações industriais. “Estamos tentando mostrar à classe empresarial como lidar com queixas e reclamações, de acordo com as resoluções positivas em outras partes do mundo. Também levando o tipo de pesquisa necessária para uma negociação trabalhista e quais as medidas que as empresas devem tomar para se protegerem diante de um movimento grevista. Ou seja, a proteção da propriedade e das pessoas”, declarou Shaw.


 


Motivo para a intervenção no sindicato


 


As lições foram bem assimiladas. Os empresários casaram com perfeição a tática de endurecer as negociações e recorrer às forças de repressão comandadas pelo governo para atacar a greve. Embora brigando com os fatos, eles negaram essa combinação. “Foi coisa nossa e não vejo porque o governo teria interesse de forçar o endurecimento. O governo não colocou o dedo na questão. A decisão de não abrir negociações foi nossa”, disse o dirigente da Fiesp Luiz Eulálio Vidigal Filho. O governo participou sim dessa manobra — principalmente por intermédio dos ministros Murillo Macedo e Delfim Netto.


 


Com a decisão do TRT, estava dado o motivo para a intervenção no sindicato, finalmente decretada no dia 17 de abril de 1980. Naquela data, o ministro Murillo Macedo tratou a situação dos trabalhadores com escárnio. Minutos antes de assinar a portaria que decretava a intervenção, ele recebeu em seu escritório paulista o vice-presidente do sindicato, Rubens Arruda, que lhe perguntou: “Ministro, a intervenção está assinada?” Cinicamente, Murillo Macedo respondeu: “Não, senão não estaria recebendo um dirigente sindical.”


 


Prisões de vários dirigentes sindicais


 


Quinze minutos depois de se despedir de Rubens Arruda, às 18h30min, ele assinou a portaria que, além de determinar a intervenção, cassava a diretoria. Mas somente às 12h30min do dia seguinte chegou ao sindicato um funcionário da DRT para formalizar a intervenção. Ele chamava cada um dos diretores do sindicato pelo nome e lhes entregava um envelope amarelo, com o brasão de armas da República, contendo o decreto e a exoneração.


 


No dia 19, às 6 horas da manhã, Lula foi detido em sua casa pelo DOPS, numa operação coordenada que resultou em prisões de vários dirigentes sindicais em todo o ABC paulista. Uma assembléia no estádio de Vila Euclides decidiu que a greve prosseguiria, agora com nova exigência: a libertação dos dirigentes sindicais. Mas logo o estádio também seria novamente interditado. Diante da determinação do comando de greve, uma praça da cidade foi liberada para as reuniões dos metalúrgicos. Mas São Bernardo do Campo já era uma cidade sitiada, com permanente violência policial. O governo proibiu um show de Chico Buarque e outros artistas em solidariedade à greve e dificultou o quanto pôde a chegada de alimentos aos trabalhadores. 


 


Greve de fome pela reabertura de negociações


 


As manifestações de solidariedade cresciam em todo o país. Trabalhadores, estudantes, dirigentes políticos, centrais sindicais estrangeiras e religiosos se organizavam para ajudar os metalúrgicos em greve. No dia 21, mais de dez mil pessoas reuniram-se num “ato público litúrgico”, na Catedral da Sé, em São Paulo, para protestar contra as arbitrariedades no ABC paulista. O ato arrecadou 50 mil cruzeiros e uma grande quantidade de alimentos. Cerca de 1.400 famílias de operários eram atendidas diariamente pela organização da greve, que distribuía 2,5 toneladas de alimentos por dia. O “Comitê de Solidariedade aos Metalúrgicos”, organizado desde o início da campanha salarial e que funcionava na Assembléia Legislativa, apresentou um balanço indicando que havia arrecadado 1,6 milhão de cruzeiros.


 


A greve terminou em Santo André no dia 6 de maio, em meio a conflitos por toda a cidade. No dia 8, cerca de 3 mil mulheres saíram às ruas de São Bernardo do Campo pedindo a reabertura das negociações. À frente delas estava dona Marisa, esposa de Lula. No dia 9, Lula e outros dirigentes sindicais iniciaram greve de fome, pedindo a reabertura de negociações. A assembléia do dia 11 decidiu pelo fim da greve, afirmando, em documento, que o movimento não terminara, mas continuaria na forma de boicotes à produção. “Estas são nossas palavras de ordem: voltar à fábrica não significa produzir. Toda forma de boicote é válida”, dizia o documento, que chamava-se Boletim do Comando.


 


O sindicalismo combativo havia ressurgido


 


O principal peso no balanço positivo daquela campanha salarial foi a vitória política dos trabalhadores. Aquela heróica batalha era por algo bem maior do que aumento de salário. Reivindicava-se espaço político para os trabalhadores. Isso ficou bem demonstrado quando 100 mil pessoas marcharam saindo da Igreja Matriz dispostas a reconquistar o estádio de Vila Euclides no dia 1º de Maio de 1980. O povo, comprimido nas calçadas pela feroz repressão, cantou o Hino Nacional enquanto crianças e mulheres choravam. Mas aquele simbólico espaço foi reconquistado.


 


No dia 20 de maio de 1980, o juiz-auditor Nelson da Silva Machado Guimarães revogou a prisão preventiva de Lula e seus companheiros, atendendo a petição formulada pelo advogado Luis Eduardo Greenhalg. O regime tentava endurecer as penas — no dia anterior, um delegado havia pedido a prisão preventiva de mais cinco sindicalistas —, mas no país já existia um forte contraponto às arbitrariedades do governo militar. “Nós precisamos recuperar a confiança do trabalhador no sindicalismo brasileiro”, disse Lula no início da campanha salarial. A meta estava cumprida. Dali para frente, o Brasil não seria mais o mesmo. O sindicalismo combativo havia ressurgido e desafiava a legislação obsoleta.  Abordarei esta nova etapa na próxima coluna.


 


Leia também:


 


CUT-25 anos: agudo conflito de classes
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19609


CUT: das raízes aos frutos
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=19506


 


 

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