Lula e a lanterna do procurador-geral

O que menos o Brasil precisa neste momento é de um Diógenes, aquele personagem que com uma lanterna na mão procurava um homem honesto.

“Mil diabos, essa vossa gente, eu vejo sua divina paciência, 
mas quando virá sua divina cólera?”
                                                                                                    Bertold Brecht




A repercussão do relatório do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, denunciando ex-ministros, empresários, parlamentares, dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT), é uma dessas discussões que, convenhamos, faria as delícias de uma assembléia estudantil. Mas é pouco apropriada quando se acha em jogo o relacionamento institucional entre os poderes da República. O procurador deve ter motivos para usar esse tipo de linguajar — e deve ter amparo legal para expor publicamente informações da vida privada dos acusados, como CPFs e endereços —, mas não há nenhum sentido em direcionar o caso para um desfecho explosivo. Ao contrário: a impressão que se tem é que o teor radioativo dessa denúncia é o mesmo da série iniciada pelo ex-deputado Roberto Jefferson — ele se reduz à medida que as denúncias se multiplicam.

 

Parodiando: ao rei (a oposição), ao procurador-geral da República ou à “grande imprensa”, tudo. Menos a honra de tratar o assunto com a densidade moral que ele exige. O relatório foi um prato cheio para aqueles que vivem de manipular os fatos com o objetivo de defender interesses próprios. O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), por exemplo, disse que a denúncia “comprova” a existência do “mensalão”. Comprova mesmo? Vejamos: o já famoso relatório gira basicamente sobre o pagamento de propinas a parlamentares. Segundo a denúncia, alguns deputados teriam recebido dinheiro para votar a favor do governo. Isso é defensável? A resposta é claramente não. Pagar por votos e receber por votos é moralmente indefensável. Se o fato existiu, que se punam os responsáveis.

 

Agora: é moralmente defensável o procedimento de assinar embaixo a generalização sem provas dessa prática entre os acusados? Por que os deputados do PT receberiam “mensalão” se eles pertencem ao partido que, segundo o relatório, pagaria a propina? Já o deputado Roberto Freire (PPS-PE), que parece ser o dono do seu partido, escreveu em seu blog que “não apareceu, na longa lista da denúncia do Ministério Público Federal, o nome daquele para quem deputados e partidos foram comprados: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. “Era para aprovar matérias de interesse do Palácio do Planalto e estabelecer uma base no Congresso Nacional que o mensalão existia”, reverberou o deputado. Isso tudo é ético? Manobras dessa envergadura encontram sustentação do ponto de vista moral? É aceitável que um partido — ou deputado — de “esquerda” use esse expediente?

 

É preciso haver um equilíbrio entre direitos

 

Da mesma forma, a maneira como os partidos de direita e a “grande imprensa” trataram o relatório revela uma de suas características essenciais: a falta de integridade. Podemos chamar essa característica pelo acrônimo de BIP (Busca Insaciável do Problema). Passado o furacão da demissão de Antônio Palocci do Ministério da Fazenda, mais um em que venceu o cansaço, o relatório surgiu como o degrau seguinte na escalada do denuncismo. Por força da BIP, a “grande imprensa” — para quem a perda de Palocci foi gigantesca, talvez irreparável, para o governo — logo esqueceu o assunto e se apegou ao relatório. Graças à BIP, mais uma vez a direção geral das reportagens aponta para um golpe portentoso contra o governo. De novo, voltam os tons apocalípticos, a constatação de que o governo é nitroglicerina pura.

 

Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra a censura dos poderosos — inclusive dos monopólios de mídia. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela. Ressalvados os direitos do procurador, ele deveria atentar para esses detalhes. É difícil acreditar que Antonio Fernando Souza não sabe que no Brasil de hoje existe a reedição de um movimento que atentou contra a ordem democrática com o intuito de interromper um processo político que desagrada a elite brasileira.

 

Diz-que-diz jurídico oculta uma questão política

 

O que menos o Brasil precisa neste momento é de um Diógenes, aquele personagem do episódio que com uma lanterna na mão procurava um homem honesto. (Carlos Lacerda, que conspirou ativamente contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, criou o seu Clube da Lanterna inspirado neste personagem.) Já existem provas suficientes contra os responsáveis pela criação da tecnologia de “caixa dois” — o ex-presidente do PSDB, Eduardo Azeredo, e o banqueiro Daniel Dantas, intimamente ligado aos tucanos, por exemplo —, que nem de longe aparecem no relatório. (Leia a coluna “As ligações perigosas do PT com Dantas”, no seguinte endereço: http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0921/bertolino_0921.asp?NOME=Osvaldo%20Bertolino&COD=4928.) Não há justificativa para o procurador ignorar o fato de a “grande imprensa” e a oposição — de direita e de “esquerda” — manifestar simpatia pelo roto e tender a protestar contra o governo sempre à socapa, em vez de abertamente, democraticamente.

 

Na verdade, o diz-que-diz jurídico oculta uma questão política. A maior parte dos que avalizam essa ação contra o governo transformou o episódio em mais uma batalha da guerra movida contra o presidente Lula. Mais que qualquer opinião jurídica ou falácias como a do “mensalão”, é o resultado das pesquisas eleitorais que está em jogo. Fica claro, portanto, que há uma luta política que se move contra o programa de governo do Executivo eleito, bem como uma luta em favor de interesses politiqueiros. Ninguém, nesse caso, está envolvido numa batalha contra a corrupção, contra os desmandos de um governo autoritário ou em favor das liberdades públicas. Apenas se luta contra um programa de governo. Visto de outro ângulo, pode-se dizer que uma pequena parcela da sociedade mostra-se incapaz de respeitar regras estabelecidas democraticamente.

 

O Brasil precisa de mais rigor moral

 

Não se está aqui dizendo que o Brasil não precisa de mais rigor moral. Em vez de criar factóides, os brasileiros ganhariam muito, por exemplo, se a Justiça conseguisse desencavar denúncias como as que envolvem 18 pessoas em empréstimos do Banco do Brasil no processo de privatizações da Vale do Rio Doce e do Sistema Telebrás. Os prejuízos sofridos pelo banco decorrem de “perdões escandalosos” — segundo o Ministério Público — de dívidas de duas empresas pertencentes a Gregório Marin Preciado, casado com uma prima do candidato a governador do Estado de São Paulo pelo PSDB, José Serra, e seu ex-sócio. Na época em que teriam ocorrido os perdões, era diretor do banco, e votou a favor, o ex-tesoureiro de campanhas de Serra, Ricardo Sérgio de Oliveira.

 

A conexão com as privatizações estaria no fato de Oliveira ter participado ativamente de negociações ligadas a elas. Esses fatos devem ser investigados, sim. Mesmo que seja agora, quase em cima da hora do voto, quando cada miligrama da biografia dos candidatos pesa na balança. Existe ainda a lama que está sobre o ex-secretário-geral da Presidência no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Eduardo Jorge, por envolvimento na roubalheira do edifício do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo. E, entre tantos outros, o escândalo de R$ 10 milhões que não teriam sido declarados na campanha para a reeleição de FHC em 1998. A falta de integridade da direita, enfim, não tem limites. Mas nem tudo está perdido. O jornal O Estado de S. Paulo foi ouvir na França o sociólogo Alain Touraine. Ele disse que o Brasil vai continuar a andar. Ah, bom. Agora estamos mais tranqüilos.



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