Catolicismo popular e memórias dos ‘Dias Grandes’ no sertão

Tenho como patrimônios culturais familiares, que ainda hoje são marcantes em minha vida de sertaneja, a gastronomia religiosa do “Dia do Nascimento” (Natal) e a dos “Dias Grandes” (nome da Semana Santa no sertão), onde pontificam também minhas lembranças da queimação ou malhação do Judas no Sábado de Aleluia.

Havia uma “meninada judeira” em Graça Aranha, onde fazer Judas com cabeça de mamão verde e olhinhos de peteca (bola de gude) era uma linda brincadeira de criança! “Fazendo Judas, aprendi ou descobri que sabia versejar, lá pelos 8 anos de idade”, pois testamento de Judas dos legítimos é escrito em versos! Ouvir a leitura do testamento de um Judas oficial do lugar é um doce delírio, pois há sempre algo picante a decifrar, sobretudo insinuações sobre “cornices” e teúdas e manteúdas de uns e outros…

A Semana Santa, segundo as leis do catolicismo popular que comandavam o viver em minha família, era um tempo de silêncio, jejum e mil e uma proibições, mas das comidas ainda hoje sinto o odor. Portanto, foi com um misto de raiva e ternura que, num jantar natalino na casa da amiga feminista Maria Elvira, em Belo Horizonte, ouvi de uma das convidadas uma história que me fez pesquisar muito sobre o bacalhau e depois escrever o artigo “Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”.

Naquele lauto banquete, ouvi falar pela primeira vez sobre a bicha (fila) das indulgências para comer carne na Semana Santa em Portugal! Não tenho certeza, mas acho que a contadora foi Beth Pimenta, fundadora da Água de Cheiro. Ela estava em Portugal na Semana Santa e ficou espantada com as filas enormes de pessoas com sacolinhas de carne em volta das igrejas católicas. Ao indagar o que era aquilo, recebeu como resposta que, para comer carne, que ficava baratíssima naquele período, era preciso que ela fosse abençoada pelo padre!

Evidentemente, percebi na hora que a “bicha da carne” colocava a nu o logro cultural e religioso no qual fui criada: na Quaresma, era seguido à risca o preceito de não comer carne na Quarta-Feira de Cinzas; em nenhuma sexta-feira naqueles 40 dias, e em nenhum dia da Semana Santa porque ela era dedicada a guardar contritamente a dor sofrida por Jesus Cristo, com rezação, mortificação, jejum e silêncio!

“Desde fim do século XV, começo do XVI, o Vaticano, em reconhecimento ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, decretou que os cristãos não poderiam consumir carnes quentes durante a Quaresma. Dizem que o Vaticano era proprietário da maior frota bacalhoeira – caravelas para a pesca do bacalhau que levavam os dóris, barcos a remo, nos quais os pescadores (bacalhoeiros) se lançavam ao mar para a pesca. Visando maximizar seus lucros, o Vaticano proibiu o consumo de carne durante a Quaresma, quando então as vendas de bacalhau explodiram. Já era um alimento apreciado nas camadas populares europeias, sobretudo portuguesas, por ser nutritivo e barato”. (“Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”, O TEMPO, 19.4.011).

Dizia vovó Maria: “Se Deus inventou comida melhor do que bacalhau, guardou só para ele”. Foi seu amor pelo bacalhau que tornou sua descendência amante incondicional da culinária bacalhoeira, e eu vivo quebrando a cabeça tentando reproduzir suas receitas! Já recuperei o bacalhau à espanhola, o arroz de toucinho com bacalhau, mas não consigo fazer suas misteriosas trouxinhas de couve com bacalhau no borralho, que iam ao borralho enroladas em folhas de bananeira, já que desconhecíamos o papel-alumínio!

Vovó era uma sábia sem igual.

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