Cultura e luta de classes

Estive por esses dias em Nazaré Paulista, com o pessoal da UJS de São Paulo, numa roda de conversa sobre cultura e comunicação de seu Socializando – momento formativo que eles periodicamente promovem.

A referida roda começou já noite entrada, passados o banho e a janta da tropa – toda ela assanhada para a festa de logo mais. Entretanto, sentaram todos na varanda que nos serviu de auditório, concentrados e atentos; e lindos, como lindas são as lutas que todos os dias travam.
Depois de delimitar o tema cultura no perímetro dimensão simbólica da vida nacional, partimos para a caracterização da cultura brasileira: "A cultura brasileira", disse esse módico escriba no tom menos professoral que conseguiu, "assenta-se no binômio antitético dominação versus resistência".

– What?!

– Fale língua de cristão, sujeito!

Como íamos dizendo, a dominação tem duplo caráter: ela é estrangeira e de classe. Para verificar a estrangeirice que nos domina, não carece uma grande tese: basta saber que em torno de 80% do conteúdo que ocupa nossas telas de cinema são norte-americanos, que a maioria dos vídeos por demanda visualizados é produção anglo-americanas, que os livros de ficção mais lidos são os traduzidos do inglês, que nos vestimos em São Paulo tão deselegantemente quanto os novaiorquinos; que, da fralda de nossos filhos ao chocolate matinal, do sabor do creme dental à gordura do fast food, do ideal de mulher perfeita ao conceito de amor, do multiculturalismo à pós-modernidade, tudo tem algum nome estrangeiro impresso no rótulo.

– Daí deriva que pensamos e agimos como ianques?

Calma aí, que ainda falta um pedaço: a dominação de classe. Esta está dentro daquela e aquela dentro desta, e se expressa no conservadorismo político, ético, estético e mesmo epistemológico, se assim posso me expressar; no elitismo, que nega acesso e discrimina; e na alienação, que soterra a crítica, a investigação e a ação consciente, e nos aparta do que é nosso, de nossa história, privando-nos de ícones e de identidade.

– É agora que a gente vira cowboy mascador de bubble gum?

Não. Porque tem a contraparte. A resistência. Que também tem duplo caráter: ela é nacional e popular.

– Aff, que cheiro da naftalina! – torcerão os narizes os moderninhos cosmopolitanos.

– Dispensa o paleontólogo! Achamos um dinossauro vivo! – gracejarão os cibernautas da era pós-industrial.

– Senta aí, acende uns incensos e vai mastigando esse chiclete com banana, que ainda tem chão – respondo eu aos patrulheiros de plantão, que não sei o que vieram aqui fazer, se nem na roda estavam.

A resistência de natureza popular e de caráter nacional traduz-se na perspectiva transformadora de nosso ativo simbólico, marcado pela criatividade e inovação, e pela apropriação cultural operada por meio da transfiguração de motivos, temas e arranjos estéticos.

Esse binômio dominação versus resistência traduzir-se-á (já que ultimamente estamos sob o império de mesóclises temerárias, mesoclisemos) nas múltiplas dimensões da cultura, e produzirá os resultados mais inusitados. Esses resultados dependerão da correlação das forças culturais em contenda. No quadro geral de nossa história cultural, nem a dominação classista deu conta de ocupar todos os territórios, nem a resistência nacional e popular pode cantar vitória.

Na educação, por exemplo – dimensão estratégica da cultura -, digladiam-se a linha liberal-positivista, inaugurada pelas elites nos primórdios da República e atualizada recentemente por seus herdeiros golpistas, e as diferentes linhas de educação popular, como a freireana e a histórico-crítica, de Saviani. As segundas chegam a hegemonizar o pensamento da academia e de vasto contingente de educadores e estudantes, mas quem vai se impondo de cima para baixo é a primeira, encastelada que está no aparelho de Estado e compromissada que é com as demandas do capital. Isso produz uma espécie de hibridismo nas linhas e práticas pedagógicas nas salas de aula do País, nas quais Piaget, escolanovistas, Vigotsky, construtivistas e tradicionalistas convivem numa sopa eclética.

No campo institucional, essa peleja se evidencia, ao longo das últimas três décadas, na convivência tensa, refletida em nossas políticas culturais, entre a lógica de mercado e a lógica pública: de um lado, os liberais e seus neo-representantes, convictos de que cultura é missão capitalista, e que cabe ao mercado apoiar, regular, selecionar o que vai ou não para a cesta básica simbólica do cidadão; de outro, todos os gatos escaldados de bom senso, sabedores do quão excludente e concentrador é o mercado, e convencidos de que cultura é patrimônio inalienável – porque um direito social básico, território de experimentação e inovação, elemento identitário de um povo, e ativo simbólico e econômico nacional estratégico.

Nos anos 90 do século passado (olha a naftalina aí…), a hegemonia dos neoliberais fez, quase que exclusivamente, das leis de incentivo fiscal, a política para a cultura brasileira. A partir de 2003, num governo central sob o comando de forças de figurino popular, o volume do orçamento público aumentou, e a política de incentivo foi manejada numa perspectiva democratizadora. No Brasil pós-golpe, o mercado retoma a ofensiva.

Nem tudo o que foi escrito aqui foi dito na roda; e nem todo o dito na roda foi aqui escrito. Mas a conclusão é a mesma: o binômio antitético dominação versus resistência, insculpido no DNA de nossa cultura, é uma das expressões da luta de classes no Brasil, e faz parte da contradição entre o Imperialismo e as nações por ele dominadas ou exploradas no mundo. A defesa da cultura nacional é, portanto, bandeira que se inscreve no novo ciclo de lutas do povo brasileiro.
Há quem não acredite, mas é uma bandeira jovem – como a Nação que a empunha.

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