“A Criada”, jogos de cobiça e paixão

Sem mudar seu tema natural, cineasta sul-coreano Park Chan Wook mescla sedução, romance e vingança em filme sobre cobiça e imperialismo.

Não de tudo cicatrizados, os resquícios da dominação japonesa da península coreana (1910/1945), da qual emergiram como nações independentes as Coreias do Sul e do Norte (1948), se constituem em subtexto a motivar as ações dos sul-coreanos Fujiwara (Jung-Woo Ha) e a jovem Sook-Hee (Kin Tae-Ri). Eles os discutem durante a armação do plano para se apossar da fortuna da nobre nipônica Lady Hideki (Kim Min Hee) e não o deixam de mencionar durante o desenrolar da narrativa.

O que engendra ambiguidade, porquanto o fazem não só para se enriquecer, mas, também, para se vingar dos maus tratos sofridos até ali, pois a ação se passa em 1930. E gera a sensação de que o intento é válido não só devido a isto, mas por ocorrer no próprio Japão, portanto em território inimigo. Parece aspecto secundário da trama, contudo trata-se de ousadia, ao exigir deles a necessária frieza para não despertar suspeitas, pois são sul-coreanos a se passar por nobres japoneses.

Com este arcabouço dramático, o cineasta Park Chan-Wook monta com seu corroteirista Seo-Kyeong Jeong, a partir do romance homônimo da inglesa Sara Waters, universos pontuados pelo clima vitoriano em que a trama se desenvolve. O principal deles no suntuoso quarto de Hideki, onde é assistida pela agora criada Sook; outro transcorre em luxuosos salões e quartos do imponente castelo e o terceiro é composto pela estrada e o campo, por onde circulam Hideki, Sook e Fujiwara.

Kouzuki autoridade por meio da dor

Mas é no quarto universo que Chan-Wook foge ao clima vitoriano, advindo de Waters, ao introduzir morbidez e extrema violência, reforçadas pelo sadomasoquismo de seus filmes (Old Boy, 2003), nas sequências hiper-realistas dos embates entre Fujiwara e o conde Kouzuki (Jo Jin Wong), tio de Hideki. Este, embora o tenha contratado, o submete a todo tipo de jogos e ardis, como se exigisse tais sacrifícios para impor sua autoridade. Têm-se, deste modo, o contraponto aos demais universos.

Esta forma de organizar o espaço ressalta ainda o simbolismo das cinzentas cores do castelo, dos tons claros dos vestidos de Hideki, os mais variados de Sook e os sombrios do cortejador Fujiwara e de Kouzuki, enfatizados pela primorosa fotografia de Chung-Hoon Chung. Numa estética recorrente à palheta multicolor do chinês Fei Zhao, em “Lanternas Vermelhas” (1991), de seu compatriota Zhang Yimou, e do inglês Michael Coultier, na adaptação do romance “Razão e Sensibilidade” (1811), de Jane Austen (1775/1817), dirigida pelo taiwanês Ang Lee, em 2003.

Se “A Criada” prima pela estética e temática, configurada pelas sequências interiores do castelo e em campo aberto, não menos admirável é divisão da narrativa em três capítulos. No primeiro vê-se a dupla Fugiwara/Sook tentar ganhar a confiança de Hideki e Kouzuki, sob o ponto de vista da dupla sul-coreana. No segundo, Chan-Wook muda-o para o de Hideki e Sook, ou seja, a visão feminina do processo de sedução, paixão e erotismo, facilitado pelo isolamento imposto à condessa pelo virulento tio.

Jovens terminam se descobrindo

Na terceira parte quando estes capítulos se fundem, o espectador sente a mudança operada por Chan-Wook em abordagem tão complexa. O que era para vingar e obter recompensa por meio de chantagem, torna-se emblemático caso de reversão e poder de duas jovens apaixonadas. Enquanto Fugiwara e Kouzuki se descobrem enganados e se digladiam sentindo-se mutuamente traídos, elas conquistam a liberdade.

Então há de um lado o despertar do espelho, em que duas jovens se sentem refletidas, de outro a descoberta de que tinham objetivos adversos. Chan-Wook, em longa sequência, opõe os dois contendores, com o conde impondo ao suposto escroque toda sua ira, ao usar ferramenta que vai lhe cortando os dedos para obter informações. Sua recompensa acaba sendo dor lancinante e silêncio de torturado.

Existe neste desfecho o horror construído pela obra do cineasta (Sede de Sangue, 2009), mas também pelo terror moderno (Reféns do Medo, de Dario Argento, 2009), no qual o psicológico se une ao físico para arrancar ao invés de verdades, só a dor. Porém são universos visuais dramatizados, nos quais a relação com a realidade se limita às estruturas sociais, diferenças de classe, tendo o dinheiro como motivador de um plano, frustrado pelo romper do isolamento de Hideko e ela se ver em Sook.

Tio de Hideko só queria dinheiro

Ainda assim, nenhuma imagem prescinde de significado. Difícil saber, fora das motivações de Chan-Wook, o que representa para o espectador sul-coreano o impacto da tortura de Fujiwara pelo nobre japonês durante a ocupação, ou seja, antes da unificação do país. Enquanto roteirista, o diretor não se detém nesta projeção, prefere o emblemático e ousado desfecho com as jovens sul-coreana Sook e a nobre japonesa Hideko, uma vez que se o parceiro de uma queria vingança, o tio da outra mirava tão só o dinheiro. A opção pelo que é justo ou não cabe ao espectador.


“A Criada”. (Ah-ga-ssi). Drama/terror. Coreia do Sul. 2016. 144 minutos. Trilha sonora: Jeong-wook Jo. Montagem: Jae Bum-Kin/Sang-beon Xin. Fotografia: Chung-hoon Chung. Roteiro: Park Chan Wook/Seo-Kyeong Jeong, baseado em romance de Sarah Woters. Direção: Park Chan-Wook. Elenco: Jung-Woo Ha, Kim Min-Hee, Kim Tae-Ri, Jo Jin Wong.

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