“Manchester à Beira-Mar”, fora dos padrões

Cineasta estadunidense Kenneth Lonergan retoma a figura do jovem irado que vive afligido pela culpa e os padrões conservadores de sua cidade.

O que parecia esquecido, como personagem caro à dramaturgia hollywoodiana, é retomado pelo cineasta Kenneth Lonergan, neste “Manchester à Beira-Mar”: o jovem cuja revolta é causada pela própria sociedade. O já amadurecido Lee Chandler (Cassey Affleck), ao surgir na tela parece um ser de mal consigo e o mundo. Carrega em seu olhar, corpo e andar o peso do que o espectador irá tomar conhecimento ao longo da narrativa 138 minutos, estruturada sem as costumeiras subtramas.

Como o Hud Bannon de Paul Newman (1925/2008)), construído pelo diretor Martin Ritt (1914/1990), em “O Indomado, 1963), ele bebe, briga e se apaixona, sem atentar ao que faz. Na primeira parte do filme, Chandler surge na pequena Beverly, Massachusetts, consertando banheiros e tomadas elétricas e tratando mal os clientes de seu patrão, pouco se importando com as consequências. Personagem, portanto, a não motivar simpatias, mas, pelo contrário, a gerar mistério por sua irascível natureza.

A partir daí Lonergan, diretor e roteirista, centra toda a ação em seu entrelaçamento com situações às quais reage, fazendo-o carregar este melodrama sobre ressentimento, culpa e desenraizamento. E torna-se, assim, uma obra carregada pelo personagem-central. Ou seja, o ator Cassey Affleck concentra toda a atenção do espectador envolvendo-o nas nuances, submersas motivações e contenção de seu Lee Chandler, transformando-o num personagem multifacetado de difícil interpretação.

Chandler interioriza suas explosões

Como personagem reativo está sempre em confronto consigo e os que, ao menor gesto, o ameaçam, mas sem explosões, gritos, apenas murros e murros. Conta então a interiorização, o psicológico, o doer para dentro, o minimalismo, na demarcação de seu rosto e gestos. Lonergan vai, aos poucos, construindo-o de forma a que o espectador termine por o entender. Isso começa quando é obrigado a retornar à sua cidade natal, Manchester, para o funeral do irmão mais velho Joe (Kyle Chandler).

Lonergan não conecta fios soltos, nem cobre frestas narrativas, através das quais o espectador preveria o desenrolar da trama. Liga-os apenas ao testamento em que Joe lhe deixa a guarda do filho Patrick (Lucas Hedges), de 16 anos, com recursos financeiros suficientes para cobrir suas despesas, até cursar a universidade. E faz Chandler percorrer a cidade, rever o barco em que trabalhara com o irmão e se entender com o sobrinho que se dividi entre duas namoradas e os ensaios de sua banda de rock.

É este homem, aparentemente um enigma, que faz a ação avançar, ainda sem adentrar ao melodrama, tampouco na sequência em que visita o irmão já morto no hospital. Mas é justamente este rever de espaços, parentes e amigos que as submersas lembranças afloram num assustador turbilhão, construído por Lonergan em flabacks. Vê-se Chandler no barco com Joe e Patrick, descobre-o com o filho pequeno e as duas filhas e a companheira Randi (Michelle Willians), terno, como um bom pai.

Lonergan sintetiza sua ideia em uma sequência

Esta ternura, porém, não atenua a impressão de contido rancor estruturada ao longo da trama. Ao desconstruí-la, na terceira parte do filme em flashback, Lonergan lança o espectador num redemoinho de forte impacto. A começar por dividir na montagem uma das sequências em duas partes: I – Randi grita para Chandler mandar seus amigos irem embora porque o pequeno Kary está doente e eles bebem noite adentro; II – Depois de eles irem embora, ele sai para comprar cerveja e não se vê seu retorno.

São estas sequências que expõem os percalços de Chandler e definem seu comportamento desde o início. Ainda mais quando Lonergan inclui a brilhante sequência de seu reencontro com Randi na rua, após anos, e ela insiste em se encontrarem para ter uma conversa e, não obtendo boa recepção, lhe pede desculpa pelas acusações e lhe propõe se reconciliarem. Contido, sereno, ele chora, mas não admite ter forças para tal. Aqui, ele decide se reconstruir e a Manchester natal acabou para ele.

O que vem a seguir em relação ao sobrinho Patrick decorre desta opção: de desgarrar-se do passado, de Randi, de seu amigo George (C.J. Wilson), do barco pesqueiro, da antiga casa da família e do jardim aonde brincou, enfim, descolar-se de Manchester. Sua rebeldia então ganha sentido, ao incluir conhecidas figuras a girar em torno de si mesmas, num conservadorismo que não mais o estimula. Não à toa, sintetizada por Lornegan na bebedeira em sua casa e na busca da cerveja de madrugada.

Filme critica o moralismo cristão

Assim, Lonergan critica o moralismo cristão-evangélico predominante nos EUA, centrado, neste caso, nos males do álcool, a se entranhar em Chandler. E o faz em obra candidata ao Oscar 2017: filme, diretor e roteirista (Lonergan), ator principal (Affleck), atriz coadjuvante (Willians), ator coadjuvante (Hedges), não pelo álcool em si, mas pelo que ele engendra em imposições advindas da sociedade local. Ao largar tudo, Chandler se descola para se reconstruir longe do conservadorismo.

Manchester à Beira-Mar (Manchester by the sea). Drama. EUA. 2017. 138 minutos. Montagem: Jennifer Lame. Fotografia: Jody Lee Lipes. Roteiro/direção: Kenneth Lonergan. Elenco: Cassey Affleck, Michelle Willians, Kyle Chandler, Lucas Hedges

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